A vingança é um prato saboreado diversas vezes.
Aquilo que a gente torce para que não aconteça em um filme de terror, é tirado do caminho logo no início. O pior é que a cena se aproxima muito de uma notícia da vida real e pouco de uma história fictícia do gênero, apesar da brutalidade com que é mostrada. Em uma rua pouco movimentada de Seul, tarde da noite, uma jovem espera pelo guincho enquanto a neve cai sem parar. Um sujeito se aproxima com o carro e oferece ajuda, mas ela recusa, porque a ajuda contratada está chegando e porque, sinceramente, ele é estranho. Não “um” estranho… estranho! Então ele volta para o carro dele, estacionado um pouco mais a frente, só que não vai embora, deixando a moça desconfiada, nervosa e o mais importante: concentrada no carro dele, enquanto o maníaco se posiciona para dar o bote. Infelizmente pra todos, o cara é um serial killer que adora se divertir com as vítimas antes de matá-las. Para o azar dele, o noivo da moça é um agente de segurança, cheio de recursos para encontrá-lo e nenhum desejo de entregar o cara pra polícia.
I Saw The Devil é longo e dedicado. O diretor Jee-Woon Kim (de Medo – 2003 e A Bittersweet Life – 2005) quer que o público entenda o quanto é plausível que um homem bom se perca tanto no submundo dos homens ruins, quando a violência o encontra e a revolta toma conta dele. Sua câmera desvia propositalmente a nossa atenção, o tempo inteiro, de onde a ação que importa está acontecendo e o resultado é a sensação constante de que estamos com o foco no lugar errado e de que não podemos antecipar nada. As cenas de violência são tão realistas e explícitas que dão medo, principalmente quando o serial killer está com alguma sequestrada em casa. Elas sempre imploram e ele nunca cede, mas a gente fica com uma decepcionante e dolorida ponta de esperança toda vez. O que ele sofre mais pra frente no filme é certamente justificado.
Entre os suspeitos que o noivo (vivido por Byung-Hun Lee – o Stormshadow do G.I. Joe) espanca na sua investigação, o verdadeiro culpado é o único cuja família ele precisa conhecer, para conseguir chegar nele. O monstro, interpretado tão bem por Min-Sik Choi (Oldboy), é o ápice da repugnância, que adora chamar o comportamento alheio de loucura, enquanto estupra, mata e desmembra gente inocente. É um homem tão cheio de ódio, que a máscara de bom samaritano que ele usa para encontrar mulheres bonitas em situações adversas, não se mantém na cara dele um segundo após o absolutamente necessário. Na pele de Choi, ele tem a aparência de um bonachão inofensivo, há dois dedos de pinga de se tornar um morador de rua, mas com a mente fria e metódica de quem está há anos matando pessoas e se livrando de corpos, sem atrair muita atenção para si mesmo, em uma propriedade adaptada para o próprio hobby. Do outro lado Lee, que é um ator bastante requisitado nos filmes de Kim, representa o justiceiro que estamos loucos para ver se vingando, mas as coisas nunca são simples nos filmes deste diretor. Os dois alphas se encontram. A briga é justa, ou equilibrada e como é de se esperar, o herói vence, mas não mata. Ele não tem pressa, o que ele tem é obstinação e tecnologia. O plano é rastrear o assassino de longe e interferir violentamente, sempre que o maluco se sentir seguro para atacar alguém. Esta é a punição que ele julga estar a altura de um serial killer e ele está absolutamente certo. A questão é… por quanto tempo ele pode fazer isso?
É impossível falar do filme sem mencionar a cena do táxi, que foi feita anos depois e com menos recursos técnicos do que uma cena similar em Filhos da Esperança (2006), mas de qualquer modo, é uma cena memorável, de nos fazer torcer pro time errado temporariamente. Com três psicopatas dentro de um carro se atacando enquanto uma câmera gira ao redor deles, é uma versão mais rústica do que a criada por Alfonso Cuaron, mas o importante é que ela mostra claramente, que não se pode subestimar um membro do pior que existe na humanidade, quando se caminha no território dele. Isso vale para o herói da história também. Ele é mais jovem, mais bem relacionado e mais bem preparado fisicamente, mas ele ainda é um homem bom e isso é um defeito aqui. Suas ações, mesmo tão brutais quanto as do homem que ele caça, são movidas por dor e sofrimento e não por entretenimento. A cada novo encontro entre mocinho e bandido, o noivo causa mais e mais danos ao corpo do maníaco e alguns desses danos são irreversíveis, mas não é apenas a carne do vilão que enfraquece, com este jogo perigoso.
O filme é repleto de cenas muito bem humoradas, às vezes de uma maneira inapropriada, como a cabeça de uma vítima que rola pra fora da desastrada proteção da policia forense, na frente dos familiares e da imprensa, e às vezes é um sopro de ar fresco em um filme muito pesado, como na cena em que o assassino pensa seguir a própria rotina, atraindo a próxima vítima na beira da estrada, mas o que aparece o coloca em uma desvantagem hilária. São momentos indispensáveis em um filme em que mesmo quando se ganha, se perde muito em retorno.
Como é que se diz? “Quando se mata um matador, o número de assassinos no mundo permanece o mesmo”? O herói não é o único que não enxerga isso, até que seja muito tarde. Até nós queremos vingança, porque somos bombardeados não só com os crimes do serial killer, mas com o reforço constante de que seria muito melhor pra todos se ele estivesse morto. É claro, não sem antes passar pela tortura merecida, mas como decidir o quanto de tortura é o suficiente? Com certeza, é maravilhoso ver o noivo descendo ao inferno, como Dante fez para enfrentar o diabo, só que o diabo aqui não se importa com nada, nem mesmo com a dor e o noivo é o único entre eles com muito a perder ainda. A conclusão é que o coisa ruim nunca deixa de ser ruim, o coisa boa está perdido para sempre e a Beatrice que ele tinha ido às profundezas para resgatar, estava no céu aquele tempo todo.