Um fenômeno inexplicável está acontecendo com a raça humana, sem que fique claro se a ocorrência cada vez mais frequente é mundial, ou se ela se limita ao país onde o filme se passa. Não há aviso, prevenção ou cura até o momento. Nenhuma pré-disposição biológica dos indivíduos afetados, da qual se tenha conhecimento, para que um plano seja posto em ação. O governo criou centros especiais de apreensão e detenção, que lembram instituições normais para pessoas em alguma situação de vulnerabilidade, porque os locais possuem quartos, com lençóis nas camas e tudo, demonstrando uma atenção e um cuidado, que mais tarde entendemos como algo direcionado aos parentes dos internados, já que quem vive nestes centros, está perdendo rapidamente a capacidade de apreciar e agradecer por estes luxos. Então tá, chega de enrolação: se trata de um evento sem precedentes, no qual algumas pessoas estão sofrendo um processo de mutação e se transformando em animais selvagens. Cada “escolhido” começa a mostrar características de uma espécie diferente, dentre tantas na diversificada fauna deste planeta, sem ter passado por nenhuma contaminação externa ou doença, tornando o acontecimento assustadoramente aleatório e imprevisível, além de ser uma sequência de metamorfoses (até a fase final, de animal completo) dolorosas, humilhantes e aterradoras. 

Os protagonistas da história são François e o filho adolescente dele, Émile. O clima entre os dois é tão azedo, que a impressão é que a qualquer momento um deles vai perder a cabeça e agredir o outro. Eles se mudam da cidade grande para uma mais campestre, com o objetivo específico de cuidar de Lana, a mãe de Émile, que está sofrendo a tão temida e muito mal vista transição. Em estágio avançado de transformação, bastante transfigurada e rejeitando o tratamento experimental, assim como os outros desta nova espécie intermediária, Lana está para ser transferida de um daqueles centros de tratamento, para outro mais apropriado e espaçoso, na cidade para onde o filho e o marido estão indo. Como não há ainda um procedimento ou uma solução oficial para o problema, François espera que o governo libere Lana para ficar com a família, agora que ele tem um bosque ao lado da residência, para que a esposa… animalizada, se desenvolva com conforto. No entanto, o veículo que transportava os pacientes se envolve em um acidente, que mata algumas criaturas e libera muitas outras naquele bosque, forçando pai e filho a uma caçada clandestina por Lana, enquanto o restante da cidadezinha outrora pacífica, mas agora tomada pelo pânico, adere a uma abordagem mais hostil de controle de “pestes”.

Não é um terror convencional, na verdade, este belíssimo filme francês se encaixa melhor no âmbito da fantasia dentro da ficção científica. O terror aqui depende do ponto de vista. À princípio, nesta fábula que não tem pressa nenhuma de se desenvolver, mas nunca deixa de ser cativante, a ideia da perda da humanidade de maneira progressiva, lenta e irremediável, é de uma crueldade imensa. Todos nós escravos dos boletos, em diversas ocasiões, já imaginamos como seria viver sem as preocupações do homem moderno. A folgada e independente vida de um gato, parece ser um delírio favorito entre internautas que adoram se expressar por meio de memes. Este faz-de-conta só poderia se manifestar de forma abstrata nas nossas mentes, porque com um pouco mais de consideração por esta concepção, ficaria evidente que deixar para trás tudo o que somos, indivíduos pensantes complexos, para viver como um bicho, seria uma monstruosidade. Com o passar do tempo no filme e a aceitação da condição, que vai além da transmutação da aparência física e se estende para a perda da capacidade de comunicação e por consequência, do entendimento de algo mais avançado do que instinto, uma sensação de calma toma conta da narrativa, mas ela não é duradoura. As questões filosóficas se tornam impossíveis de serem compreendidas ou uma fonte de preocupação para os atingidos pela doença, mas o terror é vivido pelos mesmos personagens de outra maneira. Eles precisam se adaptar a não serem mais da espécie dominante, que usa a inteligência para caçar, domesticar, prender ou matar animais de todos os portes.

O Reino Animal ganhou diversos prêmios pela França e eu gostaria de destacar a fotografia e os efeitos visuais. O filme é muito criativo e um deleite para os olhos. São vários tipos de animais, tomando conta da biologia de alguns humanos, que apavorados, se escondem e isolam, tornando as aparições em público mágicas e assustadoras. Em cada um deles, a transição entre espécies está em diferentes níveis de completude, então vemos homens com asas, crianças com escamas, adolescentes com tentáculos… É difícil decifrar o que se passa na cabeça deles além de medo, ou o quanto eles são capazes de entender com aqueles olhos de coruja, de peixe, grandes demais para o rosto ainda humano. O que não é difícil é admirar a beleza de cada um deles, mesmo que no festival de pêlos e penas do meio caminho andado da modificação, não dê para saber o que eles irão se tornar e mesmo que alguns deles já estejam utilizando o combate como forma de defesa preventiva. São lindos, são perfeitos com um pé em um mundo e uma pata no outro, em paz na floresta ou apreensivos no quintal de alguém. Eles estão ali para serem contemplados pelo público, que passa a respeitar com ainda mais carinho, se não o fazia antes e a temer pela segurança de todos os seres vivos. Se existe um terror vegano, é este aqui!

 Por ser uma obra da terra dos revolucionários originários, obviamente teria que existir um espaço maior do que o reservado ao terror, para discussões políticas e sociais. Pai e filho são aceitos imediatamente na comunidade. Não há bullying na escola e François consegue um emprego rapidamente, assim como ajuda secreta para tentar encontrar a esposa, antes do governo ou dos moradores locais. A molecada fuma e bebe, não exatamente com toda a liberdade, mas sem arrogância e sempre engajada em assuntos importantes, mostrando que qualquer sabotagem a uma causa tão nobre, indo contra os princípios da liberdade, fraternidade e igualdade dos franceses, só pode acontecer em corações muito amedrontados ou já mortos por dentro. Em meio a tantos acontecimentos, Émile tenta ignorar e depois esconder o ganho repentino de força física, a perda da coordenação motora e os outros indícios que trarão o foco do filme para a vagarosa transformação dele. Como revelar ao pai, que já perdeu a esposa, que logo o filho terá que ir embora também? O final é um pouco previsível, mas ainda é agridoce, cortando os nossos corações, na mesma medida que os enaltece também.