Lendas não são lendas, se não houver crença.

Não pense que uma cidade grande como Chicago, com seus serviços públicos de resposta imediata, como o departamento de polícia e o corpo de bombeiros, bem como um exército de trabalhadores nos arranha-céus e de vizinhos se amontoando nas vizinhanças de baixa renda, seria capaz de inibir um fenômeno de terror, que por hábito procura municípios onde a privacidade não é um privilégio. A vida agitada pelas interações constantes de pessoas diferentes, sempre gerou problemas tangíveis como violência urbana, ao contrário do ambiente bucólico das cabanas na floresta, mas a criatividade para inventar monstros para assustar crianças, não é uma exclusividade daqueles que supostamente possuem mais tempo livre, ou vivem num lugar mais calmo. A ideia de que existe mais entre o céu e a terra do que conseguimos enxergar, só necessita de um momento de silêncio para acontecer, de uma queda de energia, um ônibus atrasado em um ponto deserto ou um breve instante de paz sem latidos e motores. A loira do banheiro nunca foi uma diva rural. Na verdade, somente os medos dos neuróticos seriam capazes de lhe dar vida.

Candyman é tudo o que Lenda Urbana (1998) quis ser e não conseguiu. Imprevisível, assustador, atuado com seriedade, bem escrito e dirigido. O filme não foca tanto no nascimento, mas sim na perpetuação de mitos de rua, passados de uma geração para a seguinte, já que a história que serviu de base para a lenda, não explica certas características do monstro, que só podem ter sido acrescentadas ao longo dos anos pelos narradores, para impedir os mais novos de ficar na rua até muito tarde ou de se afastarem muito de casa sem supervisão. Tão necessário para o cinema de terror moribundo dos anos 90, quanto o Bicho-Papão e o Homem do Saco foram para as nossas infâncias.

Candyman (1992)
Candyman (1992)

Na história, Helen está trabalhando em uma tese sobre lendas urbanas, entrevistando alunos em uma universidade, quando a história do Candyman (Tio do Doce, para os íntimos) chama a atenção dela. Descrições sobre esse tipo de coisa são sempre superficiais, como quem exclui o começo e o fim de uma história e só conta o meio e Candyman é uma dessas figuras, que precisam de um ritual para serem convocadas, mas que simplesmente existem, sem uma narrativa convincente. Isso, até que uma fonte de informação menos afetada pelo sensacionalismo e pelo tom de brincadeira, diz a Helen que Candyman é um homem de carne e osso, responsável por assassinatos cheios de crueldade, em um conjunto habitacional na parte mais violenta da cidade. Ninguém acreditou enquanto a vítima gritava que alguém estava atravessando a parede para chegar até ela. Quando ela morreu, a polícia não deu muita importância para o acontecimento, por mais estranhas que fossem as circunstâncias, já que o bairro é violento e na verdade, as paredes dos apartamentos são finas e os buracos são tapados com gambiarra.

O filme começa como um slasher qualquer, mas logo toma o rumo de uma reportagem investigativa. Uma comunidade muito pobre e marginalizada, apavorada pela ideia de um maníaco com a disposição e as oportunidades para invadir residências, sem que haja uma intervenção das autoridades, é o cenário perfeito para que os moradores recorram ao sobrenatural. Somente uma entidade mágica poderia entrar e sair dos prédios sem chamar a atenção dos olhos atentos das gangues que dominam o local. No entanto, antes que Helen se aventure como uma justiceira no gueto, um colega acadêmico diz que ela não é a primeira a escrever sobre Candyman e revela a origem da lenda com um conto digno dos patriarcas da espécie, como Krueger e Vorhees. Enquanto o filme caminha entre o real e o imaginário, o importante é que o personagem criado por Clive Barker (de Renascido do Inferno e…sinceramente, mais nada) foi escrito para ser temido de qualquer maneira. Os fatos são realistas, mas a atmosfera do filme é sobrenatural e a figura do Candyman representa a todo momento, muito mais perigo do que a violência dos criminosos. Grafite sobre a lenda é mais assustador do que armas letais nas mãos de bandidos.

CANDYMAN 2

A grande sacada do filme, é que antes que o dito-cujo faça a primeira aparição, a história parece ter um começo, um meio e um desfecho satisfatório e todo o mistério é resolvido. Só que é quando a gente acredita que não precisa mais dele, que Candyman aparece, fazendo o filme sofrer uma reviravolta surreal e forçando Helen a tomar uma decisão terrível. Ele não vai até ela porque ela aceitou o desafio e disse o nome dele o número certo de vezes na frente do espelho. Helen passa a ser assombrada, porque ela tem o poder de destruir a igreja que havia se formado para a entidade no subconsciente coletivo. Toda oferenda era para ele e era dele a culpa por todos os crimes, até ela chegar. A relação – sim, eu vou usar esta palavra – entre a heroína e o vilão é a coisa mais esquisita no filme, porque beira o romance, mas funciona tão bem porque ele precisa dela de verdade, ou deixará de ser para sempre. Devoção é um sentimento indispensável que Helen irá aprender a dar valor, quando Candyman fizer ela perder tudo e todos.

Virginia Madsen, belíssima e super competente, é uma Marilyn Monroe moderna, de grande força e inteligência, para enfrentar bandidos e espíritos com coragem no papel de Helen. Tony Todd (que os mais jovens reconhecem como o funcionário do necrotério da série Premonição) no papel título, é um monstro de porte elegante, voz sedutora e a habilidade de convencer como uma terrível ameaça paranormal, quando o filme não possui muito mais do que alguns truques práticos para fins de efeito especial. Uma certa cena envolvendo abelhas, por exemplo, nunca deixará de ser icônica. A trilha sonora sacra é muito bem apreciada por todo o filme, mas é no final que ela recebe o status de Completamente Apropriada. Esta é uma história sobre anjos e demônios, sobre a carência que temos deles.