Até a morte dos pais de Cady, nada além de trabalho ocupava a mente e o tempo da tia Gemma (Alisson Williams de Corra!). Da noite para o dia, decisões das quais ela não participou, sobre métodos de ensino infantil, sobre limites de horário e sobre boas maneiras, passam a ser responsabilidade dela. Os vínculos afetivos que a tia nunca se preocupou em cultivar, são agora uma questão de urgência. Não se trata apenas da filha da irmã sob os seus cuidados por algum tempo. Cady é uma menina traumatizada, à beira da depressão, cuja outra opção de guarda são os avôs paternos que tinham ainda menos contato. Gemma está ciente de que a tarefa será muito complicada, mas está disposta a ir em frente, só que o medo do próprio despreparo, se torna o catalisador de uma solução equivocada. As dúvidas que ela tem não são uma desvantagem, como ela pensa. Só os idiotas e os computadorizados são cheios de certeza.
M3gan é uma ficção científica de terror, sobre uma boneca assassina, mas não se trata de uma Annabelle da vida. Não tem nada de sobrenatural. Primeiramente, quem aqui se lembra dos falsos comerciais absurdos e inapropriados no filme Robocop? Eles eram o retrato de um futuro cínico a ser evitado e este filme começa com um comercial similar. Gemma trabalha como desenvolvedora de brinquedos, com foco nos eletrônicos de alta performance, em uma sociedade um pouco mais avançada tecnologicamente do que a nossa atual. Após um raro momento de conexão com Cady, quando a menina incentiva indiretamente a retomada de um empreendimento abandonado à força, Gemma ignora a complexidade que o projeto M3gan exige, assim como as recomendações dos colegas e segue em frente. O objetivo é fazer uma Alexa com corpo, para ajudar com a supervisão de crianças e ganhar milhões com isso. O protótipo é criado, levado para casa e é como se todos os problemas tivessem acabado. A calmaria antes da tempestade.

A boneca é uma péssima ideia desde o princípio e meus parabéns para a produção de James Wan e companhia, por abordar com firmeza que o problema vai além do limite extrapolado na proteção e no domínio sobre Cady, por conta da programação mal feita de M3gan, apesar de que ainda há espaço para o terror tradicional com a certeza de que, se a boneca for um sucesso mundial, o mundo acaba! Os eventos acontecem em um espaço de tempo curto, não podendo se estender por mais do que algumas semanas, já que o perigo é atrelado imediatamente à decisão da fabricante. A melhor parte da história, é a crítica inflexível ao uso de artifícios divertidos e fáceis por alguns tutores, como é o caso de Gemma, para suprir as necessidades emocionais de uma criança, substituindo um cuidador de carne e osso por uma simulação. O filme sugere com diálogos tímidos, até perder a vergonha e esfregar na nossa cara, que qualquer pessoa inicialmente despreparada e desprovida dos instintos básicos, é sempre a melhor opção, quando a alternativa não respira. Paciência, trabalho duro, muito amor e tempo.
M3gan foi planejada para absorver informações e adaptar o comportamento à criança-interesse, com competência e rapidez, assim como detectar emoções com uma precisão assustadora. Antecipar ameaças, em um olhar malicioso direcionado à Cady, é um pré-requisito. Agora, presumir que as intenções são de separar o robô da criança (depois que a morte de alguns desafetos levantam suspeitas), com base no deslocamento incomum dos fluídos corporais de Gemma, já é demais. Talvez o elemento de maior fantasia no entanto, mesmo que se trate de uma história futurista, é a convicção de que aqueles olhos arregalados, aquela estatura realista e os movimentos humanizados, causariam cobiça e não repulsa em qualquer consumidor em potencial. Eu sei que sou da geração “faca no fofão”, mas não estou só quando digo que criança nenhuma conseguiria dormir, com uma figura artificial tão próxima da realidade no mesmo quarto. Eu não compraria nem em liquidação. Tudo bem que ela não é o Chucky, com seus palavrões e seu satanismo, mas tem acesso a todos os eletrônicos na casa, que controlam luzes, fechaduras, comunicação, ou seja, é um risco muito grande para uma inteligência artificial feita para ditar regras de comportamento. Ela simula vozes, patrulha a casa durante a madrugada, se vinga de algumas pessoas…

Mas é claro que isto iria acontecer! A gente lança a lista e outro de 2022, digno de estar nela aparece, mas M3gan é a raspa do tacho do ano passado, lançado ofensivamente entre os filmes família típicos da época, alguns dias antes da virada e ainda tendo brinquedo inadequado como tema. Quando falamos em escolhas da produção, uma certeira foi a ginasta/bailarina mirim, que empresta o corpo à personagem título. Os trejeitos, as poses e os movimentos, que são suavizados pelo filme, conforme os dias passam e a boneca absorve mais conteúdo em seu banco de dados, só poderiam ser reproduzidos por uma expert em “fazer o robô”, trabalhando de trás para frente na história. Eu nunca achei que alguns passos genéricos de dança (sim, já super batidos) poderiam ser tão medonhos, com o contexto certo. Tem computação gráfica nas expressões faciais, eu estou certa disso, mas elas são discretas e o risco de parecer as animações bizarras de O Expresso Polar é eliminado, quando não é preciso convencer o público de que se trata de um ser humano. Falando nisso, outra ótima escolha é a da própria M3gan, que não anseia se tornar ou ser vista como uma criança de verdade, como Pinóquio (e aqui se encerram todas as referências aos brinquedos cinematográficos, obrigada!) Ela só quer ser a prioridade na vida de alguém de verdade, o tempo inteiro e por toda a vida. Como uma péssima mãe que acredita ser ótima. O que é surpreendentemente pior do que os planos de alguns de seus antecessores que, humildes, só queriam matar a criança e tomar o corpo.