O que dizer sobre Manoj Nelliattu Shyamalan, que já não tenha sido elogiado e xingado, até mesmo neste blog em críticas longas, mas é justo que depois de duas décadas tão ecléticas (em tema e qualidade) a gente faça uma retrospectiva/homenagem, que será dividida em duas partes, já que são muitos filmes para um post só, para uma carreira que tem a cara do gênero: ideias interessantes… quase sempre bem executadas. Esta postagem atende ao pedido especial de uma leitora e amiga, que eu demorei bastante para atender e abre um precedente, para textos no futuro dedicados a outros diretores que se dedicam ao medo. Deixaremos de fora os filmes Depois da Terra (2013) e Avatar (2010) e os dois primeiros da carreira dele também, para nos concentrarmos naqueles mais apropriados ao Dia das Bruxas e ao Muito Molho, os filmes de terror que ainda parecem ser a grande paixão de M. Night.
CORPO FECHADO (UNBREAKABLE) – 2000
!Contém Spoilers!
M. Night presumiu que pessoas ruins tenham curiosidade sobre a existência daqueles que seriam o perfeito e completo oposto delas. Claro, teria que ser um tipo especial de ruim, como os que questionam a própria condição o tempo todo, não o Zé ruela que passa a vida enxergando todos como alvos. Como seria a abordagem, caso o oponente fosse encontrado? O mais prudente seria uma aproximação amigável, com uma oferta de ajuda ou mentoria talvez, se fosse o caso de uma pessoa mais jovem, ou com algum potencial nunca antes estimulado. Alguém com alguma habilidade vantajosa, que seria estudada para ser explorada, redirecionada ou até destruída. O desfecho destes encontros não tem muitas surpresas, bom, foi imprevisto aqui, mas a regra diz que o vilão precisa fazer uma declaração injusta de vitória, esfregando a verdadeira identidade e as intenções na cara do mocinho. Todos ao redor sempre o consideraram um fraco, mas olha a facilidade com a qual ele manipulou o homem mais forte que encontrou. O contrário não acontece. Gente boa não tem vontade de encontrar seus opostos e não pensa sobre arqui-inimigos a não ser que seja forçada a isso.

Conheça-te a ti mesmo, é um dos temas do segundo e muito mais sério filme de Shyamalan, que trabalha muito bem quando suas histórias abordam o extraordinário de uma forma mais intimista. Por amor, Superman, ou alguém como ele, decide esquecer os super-poderes e viver permanentemente como Clark Kent, ou como alguém com uma vida normal. Após anos de ressentimento, cuja causa o herói não lembra mais, uma ruptura é causada na família. Por isso que quando a esposa pede uma segunda chance, emocionada depois que o marido surgiu como o único sobrevivente de um acidente gigantesco, ele aceita, mas não com o entusiasmo que o público espera. A felicidade só chega por completo, quando David finalmente entende seu propósito na vida. O modo como o diretor desenvolve esta competente e sombria releitura dos princípios básicos de muitos quadrinhos, com enquadramentos especiais, excelente distribuição de cores na fotografia, uma história cativante e o respeito que apenas fãs do material impresso possuem, fazem de Corpo Fechado um ótimo sucessor de O Sexto Sentido e um ainda melhor antecessor à era Marvel nos cinemas.
Bruce Willis nunca esteve tão bem e eu estou considerando a colaboração prévia entre o ator e o diretor nesta equação. Samuel L. Jackson pode até ser o Nick Fury para o público padrão, mas sempre será o Sr. Vidro para nós esquisitos. Aliás, falando no gênero, dos filmes que estarão nesta homenagem e na parte dois, este é o mais tímido neste quesito. Eu o colocaria na mesma categoria que coloco Tubarão (1975), por exemplo, porque são filmes em que o terror depende das circunstâncias, ou é assustador quando precisa ser. No caso seria apenas quando os personagens estão em alto mar e aqui, assim que David se descobre um super herói. O medo acontece cada vez que ele enfrenta a sujeira do mundo e corre o risco de não voltar para casa. M. Night faz também um ótimo trabalho com uma direção contida, cuidadosa, sensível e aquela aparição como ator, a carreira secundária da qual ele não desiste, eu juro, nem me irritou! A confiança excessiva e por vezes infundada na própria genialidade, aliada à necessidade de aprovação generalizada, que o levou a escolhas duvidosas, ainda estavam longe de se manifestarem.
A VISITA (THE VISIT) – 2015
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A Visita marcava o retorno não só ao terror para o diretor, mas também o retorno ao cobiçado e em constante estado de renovação, clube hollywoodiano de gente que sabe o que está fazendo atrás das câmeras. Quem viu o filme, viu porque acompanha M. Night, já que o marketing foi menor do que o de costume. Fomos sem expectativas ao cinema e vibramos de alegria, porque a torcida nunca morreu, nem mesmo abandonou, apenas reagiu após anos de decepções. Ele voltou ao que amava com um found footage, para economizar o investimento modesto e mostrar para o mundo que consegue se encaixar em qualquer subdivisão que o terror inventar. Desta vez, atores desconhecidos em todos os papéis, já que a fé cega das grandes estrelas, tão abundante em outros tempos, não estava mais disponível. Como prova de que reconhecia as próprias tendências negativas, o diretor faz uma bem-humorada auto crítica, quando seguimos de trem com as crianças para a casa dos avós e encontramos um funcionário do transporte, que se revela um ex-ator frustrado que não consegue ver uma câmera ligada sem querer aparecer. Mais adiante no filme, outro aparecido faz a mesma coisa! Ele tira sarro do humor inapropriado, da aspirante a cineasta que conduz as cenas amadoras, com seus termos esnobes e nenhuma experiência… M. Night entende, ele realmente entende o que estava dando errado.

A premissa é simples, a execução é muito bem amarradinha. Os irmãos Becca e Tyler, contrariando o desejo da mãe, viajam a pedido dos avós que nunca conheceram, para a casa deles por uma semana. As lembranças de uma briga catastrófica ainda são sentidas com muita mágoa, pela mãe que saiu de casa quinze anos antes para nunca mais voltar. Assistindo ao filme novamente, fica mais claro que a missão dos adolescentes é maior do que passar algum tempo com os membros misteriosos da família. O pai deles, pivô da antiga briga, se mandou para formar outra família, então eles acreditam que precisam se comportar da melhor maneira possível, relevar qualquer bizarrice que encontram, para ter sucesso em fazer com que a reaproximação envolva a mãe eventualmente. A viagem é por ela! Com o passar dos dias na companhia de quase estranhos, a conduta dos avós (interpretados impecavelmente) é a que deixa a desejar. Mesmo que doenças típicas da idade deles sejam levadas em consideração, ver os idosos passeando entre a loucura e a sanidade, dependendo da hora do dia, é bastante preocupante. Este é um filme de terror que sem os truques habituais ou uma manifestação aberta de perigo, não sabe que é um filme de terror até que seja tarde, mas foi para isso que Deus inventou o twist de Shyamalan!
O engraçado é que por muito tempo nem ocorre para o público que devemos tomar o lado dos jovens, porque não arriscamos enxergar divisões entre os personagens. Qualquer rejeição aos avós é vista como falta de paciência e de compaixão. Os momentos de maior medo no filme, podem ser facilmente explicados e eles continuam sendo explicados de maneira convincente, até que esclarecimentos não sejam o suficiente, quando Becca e Tyler não se sentem seguros, em uma fazenda isolada e sem um sinal confiável de internet. O filme é muito bem-humorado e quase sempre passa a sensação falsa de que está tudo bem, ou de que tudo vai ficar bem. Nenhum de nós antecipava uma grande revelação do filme, enquanto ainda esperávamos que os planos de reconciliação não se desintegrassem e nisso a direção foi muito ninja! M. Night desacostumou os próprios fãs e nos levou de volta a uma era pré-Sexto Sentido, só para nos passar a perna novamente. O melhor é que o desfecho não chega quando o segredo é desvendado. A surpresa transforma completamente a história em uma luta imprevisível por sobrevivência e ainda temos o bônus de ver todas as crises familiares sendo resolvidas.
A VILA (THE VILLAGE) – 2004
Um confissão: Na época do lançamento, eu era projecionista de um cinema. Eram vários projetores para várias salas e eu conseguia evitar de assistir pedaços de filmes, porque dificilmente havia tempo para isso, mas tive a infelicidade de passar pelo projetor que exibia A Vila, bem na hora em que o primeiro twist é revelado. Que raiva! Na próxima folga, lá estava a derrotada, aos poucos se apaixonando pela novata Bryce Dallas Howard e pela história que se desenrolava vagarosa e divertidamente. Super curiosa sobre o que tinha além da floresta. Chocada com a repentina mudança no cenário inocente, trazida por um ato terrível de um dos personagens. Apavorada com aquela aparição medonha entre as árvores, ignorando o conhecimento adquirido por acidente naquela mesma semana. Aí vem o segundo twist. Se alguém me disser que matou a charada antes do tempo, eu vou chamar de mentiroso. O cara te pegou! Se me pegou duas vezes, te pegou pelo menos uma.

A Vila é sobre um pequeno povoado do século dezenove, que vive cercado por uma floresta da qual ninguém pode sair. Todos vivem em harmonia na comunidade, que conta com a sabedoria de um grupo mais velho de moradores, que se reúne com frequência para tomar decisões que beneficiam a todos. Vem deles o conhecimento de que atravessar o bosque para visitar qualquer outra cidade pode ser fatal, por conta de criaturas selvagens que vivem entre as árvores e não toleram invasores. Não faltam recursos básicos na vila, ninguém é explorado ou abandonado à própria sorte. Os mais velhos escutam todos com atenção e respeito, os mais novos partem e remendam corações. Os bem mais novos se desafiam correndo risco na borda da floresta, exercitando o direito divino que todos temos de arrumar encrenca. O desejo de explorar existe, mas é reprimido sem tirania. De vez em quando, as criaturas aparecem na pequena cidade e não deixam dúvidas sobre quem manda no pedaço. Até que um incidente, que expõe entre outras coisas, o fato de que eles não possuem tudo o que precisam, força a reorganização das regras de convivência, permitindo que alguém se aventure além da fronteira proibida em busca de ajuda.
Quando A Vila termina, pode não parecer a princípio, mas se trata de uma conclusão bastante cruel. Apesar de ser o diferentão e ter mais do que o de sempre, este filme é muito maior do que acontecimentos inesperados. O maior deles nem conta como twist, porque vem de dentro daquela pequena sociedade super pacífica. Shyamalan nos mostra que Utopia é exatamente a definição da palavra, fantasiosa e fictícia. Não importa o quão educada e bem cuidada sejam as pessoas que formam aquele município, é impossível ter o controle de tudo. Evitar a cor do sangue para manter os monstros afastados, não impede o derramamento de sangue. Se nem mesmo na história de Adão e Eva, eles são poupados da violência que aparece dentro da própria família, imagine vivendo fora do paraíso bíblico. O verdadeiro terror de A Vila é a constante ameaça ao estilo de vida daquelas pessoas e pode aparecer a qualquer momento no futuro.
A DAMA NA ÁGUA (LADY IN THE WATER) – 2006
Story é uma criatura mítica vinda do fundo do oceano, atraída para um condomínio cheio de moradores excêntricos, onde ela precisa encontrar um escritor especial. Seu propósito é servir de musa, para que ele pare de enrolar e finalmente escreva o livro que irá inspirar o próximo presidente, trazendo mudanças que serão sentidas no mundo todo. O encontro entre os dois é breve e aparentemente eficaz, mas um pouco decepcionante para quem assistiu a uma animação excessivamente longa na abertura do filme, sobre a importância da colaboração entre musas e artistas. Agora Story precisa voltar para casa, mas o problema é que apesar de ter chegado pela piscina… a musa precisa ser levada de volta por uma águia gigante com horário específico, como qualquer meio de transporte pago para os mortais. Cercando o condomínio, desde a chegada dela, estão as feras assassinas, que sem a supervisão dos macacos que protegem os acontecimentos, estão na caçada por Story e qualquer um que tente proteger a moça… Como dizia o diretor David Mamet, se for fazer um filme, não faça sobre os correios, faça sobre uma carta. Que diacho é isso aqui, M. Night?

Além da musa, do zelador que a encontra e do escritor salvador (e eu nem vou falar sobre quem o interpreta), temos entre os vizinhos um bodybuilder que só exercita um lado do corpo, a família latina escandalosa, os maconheiros do apartamento 13A, as coreanas que conhecem de infância a lenda da criatura em questão, fazendo revelações de acordo com a conveniência do roteiro. Eu fico imaginando a cara das crianças coreanas, ouvindo essa salada antes de dormir e ainda lembrando detalhes para passar para as próximas gerações. Pai e filho que gostam de charadas, esposa que revela as intimidades do marido para todo mundo, um enclausurado e eu me perguntando se M. Night planejava sua própria versão de Faça A Coisa Certa (1989), mas no filme de Spike Lee havia um equilíbrio saudável na participação de tantos personagens, uma importância orgânica que cada um tinha na história… ah, tem um crítico de cinema que se mudou recentemente para o prédio também. Ele representa sozinho a categoria de vidas descartáveis do filme, com sua arrogância, seu mal humor e suas informações equivocadas, que quase custam a vida de Story. Tava querendo brigar, meu amigo diretor?
Bryce Dallas Howard possui o look perfeito para a musa esquisitinha, isso é indiscutível. Eu fiquei esperando que teria alguma reviravolta no modo como a história estava sendo conduzida, que a musa estava ali para mudar também uma direção que estivesse consciente de si mesma, se introduzindo no filme, transformando todos aqueles esteriótipos em personagens multi dimensionais, mas a história não parava de crescer e ficar cada vez mais ridícula. Os “scrunts”, como se chamam as feras com cara de lobo e a habilidade de camuflagem, estão dificultando o encerramento da tarefa porque precisam matar os “narfs”, como são chamadas as criaturas do mar, mas essa é apenas uma das diversas regras sem explicação no filme. Uma curadora, um protetor, um simbolista e outros títulos vão sendo revelados para os moradores, que precisam se unir para salvar a moça e eu juro que devo ter visto uma versão Shyamalan dos três reis magos em um determinado momento, mas nessa tentativa de fazer de A Dama na Água o filme mais original possível, algo que ninguém pediu ao diretor, esqueceram de justificar diversas presenças que só fazem número. Eu admito que a parte mais divertida do filme, foi uma oportuna confusão de identidades, mas isso é até fácil com tanta gente envolvida. Uma fantasia mais simples, nunca esteve fora da capacidade de M. Night e evita por exemplo, uma pessoa vendo símbolos, mensagens urgentes e atualizadas sobre os eventos a seguir, em uma caixa de cereais. Ainda bem que o crítico morre antes de testemunhar um negócio desses.
TEMPO (OLD) – 2021
Me irrita que alguns personagens de Shyamalan sejam superficialmente complexos. Eles falam coisas excêntricas com uma determinada frequência, porque M. Night prefere que personalidades sejam expressadas com palavras e não com ações. Neste filme, eu não acredito que seja necessário, mas isso acontece toda hora mesmo assim. O diretor não aceita que certos elementos não muito conhecidos, ligados ao envelhecimento e à mortalidade, possam ser pesquisados posteriormente ou simplesmente aceitos pelo público. Nós temos entre os banhistas nesta história um médico, um enfermeiro e um homem que trabalha no setor de estatísticas de uma companhia de seguros. É importante que estes personagens sejam ótimos profissionais, porque nenhum evento biológico que aconteça ou deixe de acontecer, escapa da análise inquestionável deles, para que nossa atenção possa estar disponível para a próxima explicação. Em uma sequência apavorante, envolvendo ossos quebrados e regenerados imediatamente, a conclusão de uma criança sobre o fenômeno, por exemplo, poderia ter sido deixada de fora, mas aparentemente não podemos arriscar deixar dúvidas neste filme e infelizmente desencorajamos uma esclarecedora segunda assistida. A desculpa é que tudo acontece de forma muito rápida, mas a verdade é que… isso não é verdade! Nos seria permitido viajar sobre o que assistimos, de vez em quando, se a direção tivesse feito uma distribuição melhor dos eventos.

Portanto, outro problema de Tempo, o filme, é que tempo, o substantivo, é usado de uma maneira equivocada. É claro, com a existência acelerada os personagens estão sempre deslocados, o filme no entanto, tem mais ou menos a duração padrão. A ideia dos anos passando, geralmente evidenciada por trocas de atores no mesmo papel, ou alguém dando um berro na praia quando causas naturais ou doenças apressadas produzem um corpo, acontece em um arranjado estranho de sequências e novamente, é compreensível que o diretor quisesse nos colocar no lugar dos personagens, que estão confusos e apavorados, mas não ao custo de transformar o filme em um longo e arrastado episódio de Além da Imaginação. Eu explico. O filme é curto, no sentido de que não tem muito filme nele. Muita coisa é revelada logo no início, como status de relacionamentos e condições médicas de algumas pessoas, quando essas informações poderiam acontecer pela história de uma maneira menos artificial e forçada. Ao invés disso, ficamos apenas esperando os problemas se intensificarem, no caso da saúde ou se resolverem, no caso das relações pessoais, enquanto não estabelecemos conexão com nenhum rostinho que possa mudar de repente.
Na história, que não é má, alguns hóspedes de um resort, são convidados para passar o dia em uma praia fechada, cujo acesso é por dentro de uma caverna. Brevemente, eles descobrem que não podem sair do local e que a praia exerce uma força sobrenatural sobre seus corpos, acelerando absurdamente o processo de envelhecimento. Eu gostei muito de não haver sadismo, no motivo para fazer gente inocente esperar a morte chegar, da pior maneira possível. O paranormal está ali perto, sempre esteve e pelo menos isso não tem uma razão, simplesmente existe e as pessoas ao redor estão tirando vantagem, por uma causa que consideram nobre. Outra ótima vantagem explorada pela direção é o nosso medo do processo como um todo. Ver as pessoas se deteriorando nas poucas horas de uma tarde é assustador. Rugas nunca foram tão temidas. Por conta disso, o filme produz algumas imagens medonhas e bem realistas e merece sim ser visto porque é muito interessante. Eu ainda teria acelerado aquele final, que parece não acabar nunca, mesmo com tanta coisa correndo diante dos meus olhos, ainda que isto custasse mais vidas no filme e livrasse a cara de muita gente.