O hábito de comparar versões é inevitável para qualquer um, a não ser que você não se lembre tão bem do original. Então esta aqui teve a cortesia de ser quase encarada como… como diz a minha mãe: “Filha única de mãe solteira”, algo inédito, primário. Eu digo quase, porque a sensação que temos olhando para aquele cubo maligno sendo apalpado e reconfigurado, é a de um terrível déjà vu. Não dá para ignorar completamente a fama que objeto possui no universo do terror, por ser uma chave engenhosa para outra dimensão, acionada por sangue e péssimas decisões. Eu vejo um filme respeitoso, mas sem dívidas para honrar, enquanto sou aos poucos lembrada de que o inferno criado por Clive Barker era azul e que seus comandantes, liderados por um alfinetado inesquecível, contavam sempre com a curiosidade de personalidades perturbadas, para que nunca faltassem reservistas em um exército de remendados.
Nesta refilmagem, Riley é uma ex-usuária de drogas tentando genuinamente melhorar de vida. Ela está sóbria há meses, busca um emprego que pague mais e preocupe menos o irmão dela, mas comete o deslize que parece ser comum para muita gente nestas condições: conviver com as companhias erradas de sempre. Numa tentativa de acelerar o processo que supostamente a tornaria independente de tudo, inclusive da ajuda financeira do irmão Matt, a jovem se envolve, com o namorado igualmente em processo de desintoxicação, em um furto nada lucrativo e extremamente perigoso. Não é um perigoso normal, já que a polícia não foi acionada, eles não deixaram testemunhas e não vai ter um proprietário vingativo buscando os ladrões. A fonte de arrependimento é apenas a mercadoria. Com um design que encoraja a manipulação e a capacidade de invocar demônios, toda vez que seu formato se modifica, lá está o quebra-cabeças mais terrível já concebido. A primeira vítima se fere por acidente na caixinha e desaparece sem deixar rastros. Não é Riley, é alguém que ela jamais permitiria sumir sem explicações. Pelo menos ela não o viu ser levado, mas nós vimos, cada detalhe grotesco da reivindicação.

Os cenobitas estão de volta! Desta vez, vemos uma certa influência dos monstros imaginativos de Guillermo Del Toro, no belíssimo (subjetivo, é claro) trabalho de maquiagem dos diversos vilões. Por mais degenerados que sejam os gostos e a aparência, aqueles representantes do submundo astral – segmento gótico, obedecem às regras impostas pela caixa que abre o caminho para um pedido especial, para quem sobrar de pé ao lado do objeto na sua forma final. Cada aparição é vista com fascínio e horror. A atmosfera do filme é sempre macabra. Medo está presente, não nos esqueçamos do ingrediente principal do gênero. Nesta versão eles fizeram uma manobra meio Caça-Fantasmas (2016) e transformaram Pin Head em uma mulher. Tudo bem que não é o mesmo personagem, aqui ela tem o nome de Sacerdotisa, mas os pregos segurando a carcaça milimetricamente retalhada são inconfundíveis. De qualquer forma, não houve prejuízo, porque a atriz fez um ótimo trabalho, ela é elegante e intimidante, mas eu não acho que seria pedir demais, já que ela é oficialmente outra cenobita, colocar Doug Bradley, a face de Hellraiser, para fazer uma participação especial neste filme. Se conseguem tirar Tobey Maguire da aposentadoria e juntar três homens-aranha em uma só produção, qual é a dificuldade aqui?
As mortes do original eram instigadas por luxúria, mas por mais que o tema de heróis delinquentes seja mantido, aqui os acidentes de percurso são na sua maioria motivados por amor. Em um ritmo que prende bastante a atenção, sem tédio, sem cansaço, sem excesso ou falta de informação, acompanhamos a protagonista na busca por respostas, sobre o significado da caixa e das criaturas que passam a atormentar a pobre, incentivando a contínua evolução na forma do objeto. Riley está apavorada e relutante, mesmo depois de saber que com mais algumas vítimas, ela ganha o direito de requisitar a primeira delas de volta. Os personagens do filme são estranhamente agradáveis. Jovens sem a síndrome do “quem grita mais está com a razão” e eu acredito que a escolha do elenco, talentosos e desconhecidos na maioria, contribuiu para a autenticidade nas emoções em um filme que não tem medo de cometer exageros em outros departamentos.

Eu não sei se o artifício usado neste remake, para em um determinado momento suprir a sede de sangue do quebra-cabeça, sem sujar as mãos ou a consciência da nossa questionável mocinha, já foi usado em outros filmes da franquia, mas assim que acontece a sensação é de que um sacrilégio foi cometido. Hellraiser é um conto sobre pecadores, mas a produção não conta. Foi covardia ou uma tentativa de desviar a rota do caminho previsível? Encurralar um dos cenobitas em portas de ferro, também foge do que o próprio filme estabelece como aceitável, mas eu vou dar um desconto para o diretor David Bruckner, de quem ainda vamos falar mais no futuro. Ele conseguiu sim curvar algumas leis, mas não de maneira permanente, endireitando a ordem natural dos acontecimentos a tempo de ainda entregar uma reviravolta no final da história.

Talvez minhas expectativas estivessem muito baixas, porque eu fiz a besteira de ler um monte de comentários negativos de cinéfilos a respeito do filme, mas a verdade é que para mim foi uma ótima experiência. Uma homenagem verdadeira, como se Bruckner realizasse a visão de Barker, só que com mais dinheiro. Os efeitos não são apenas demonstrações de competência técnica, eles estão a serviço da narrativa. A mansão onde grande parte do filme se desenrola, poderia ficar bem brega, com tanta parafernália e pouca praticidade, como móveis, por exemplo, mas a direção de arte é impecável e novamente, tem um propósito. Eu adorei a mensagem final do filme, porque ela é atual e dá talvez mais crédito para a existência dos cenobitas do que eles jamais receberam… eu espero, não tenho certeza, não está fresquinho na memória. Não existem atalhos. Escolhendo ou não de forma consciente, um pecador irá sentir todo o peso da destruição que suas decisões causaram, em estranhos ou entes queridos. Religiosinho esse Bruckner!