Dez anos antes, a categoria zumbi como a conhecemos no cinema de terror dos dia de hoje, fazia sua estreia oficial com A Noite dos Mortos Vivos, um independente em preto e branco, divisor de águas no gênero, que serviu de inspiração para uma infinidade de filmes semelhantes, que hoje inspiram os cineastas modernos. Muito mais do que uma sementinha de uma ideia legal, feito com baixíssimo orçamento e pouca experiência, Noite, era uma obra sem precedentes, cativante, tensa, super injusta no encerramento e recheada de crítica social. George A. Romero foi o avô do terror e quando ele tinha idade para ser pai, o segundo filho veio mais ou menos no mesmo estilo. A sequência da história, mostrando uma visão mais ampla da pandemia infernal, era colorida, até demais,  tinha um financiamento respeitável, quase uma hora mais longo do que o primeiro, mas com os mesmos vilões e a mesma vocação para espelhar aspectos da sociedade que precisavam ser revistos.

Quando começamos Madrugada dos… quero dizer, Zombie: O Despertar… o problema dos cadáveres se levantando já fugiu completamente do controle das autoridades. Francine, a nova Barbra, está segurando as pontas junto com os colegas na emissora de televisão na qual trabalha (Atenção para a ponta de Romero como o diretor de t.v.), enquanto o resto do país está em fase terminal. O clima é caótico, até em frente às câmeras e quando não existem mais lugares seguros para direcionar o telespectador, não há razão para continuar com a transmissão. Alguns aceitam que aquele é o fim da humanidade, alguns enlouquecem e outros, mais prevenidos e um pouco egoístas, se organizam para sair da cidade, como o grupo de policiais que rouba um barco na esperança de encontrar uma ilha descontaminada, a mesma ideia da galera do remake deste filme, feito em 2004. O grupo de Fran conseguiu um helicóptero, mas não há um destino certo. Falta água e comida. Combustível também é um problema, então cada parada para abastecimento é arriscada demais, mesmo longe das áreas urbanas. Até que Fran, Peter, Stephen e Roger encontram o melhor e mais emblemático esconderijo de todos os tempos: o Shopping Center! O único problema é que a galera que bateu as botas, continua retornando ao local, talvez em busca de botas novas. 

De vez em quando, a história principal pausa para que o diretor esfregue a superprodução dele na nossa cara, com cenas de outros lugares e outros personagens enfrentando a pandemia. George sem amarras, como é o caso deste filme, se transforma em um cara ainda mais ousado. Pela primeira vez, eliminar crianças zumbificadas não levanta um problema moral. Os mortos do vô Romero possuem memória e instinto, fazendo do confronto contra eles, que continuam lentos, mais complicado e focado em estratégia. Nós sempre assistimos ao apocalipse pela diversão, mas o diretor sempre quis que seus filmes fossem mais do que entretenimento. Que delícia a abundância de recursos, mas que pena não poder dividi-los e que pesadelo que o cotidiano se converteu em sobrevivência e não haja mais liberdade para ir e vir, e para criar coisas novas. O fim da civilização não é para ser divertido!

Claro, nem tudo é marasmo e sombras nesta produção. A piada recorrente é que o grande salvador da pátria, o piloto Stephen, é uma anta que vive se enfiando (e o resto do grupo) em situações perigosas desnecessariamente. Em um determinado momento, a maior ameaça é um zumbi Hare Krishna, um símbolo da paz e da boa convivência, informando que morto não tem religião. Morto-vivo, menos ainda! Nem tudo o que acontece de ruim, é fruto da má sorte, muitas vezes se trata de burrice e lerdeza mesmo. George também é o roteirista e diz para a plateia o tempo inteiro que até existem vantagens em ser um sobrevivente, mas é muito provável, considerando o nosso despreparo, que não sobreviveríamos. Ao contrário da versão de Zach Snyder, que eu também adoro, o shopping está repleto de inimigos e os refugiados estão em severa desvantagem, mas o que realmente interessa é que em nenhum momento o consumismo, maior crítica do filme, deixa de ser prioridade. Eu acho um barato que Stephen está sempre bem vestido, com roupa de linho e sapato social, e Fran está sempre com os cabelos perfeitamente escovados, como se a moda não fosse uma fuga momentânea da realidade, mas sim a norma a ser seguida. O mundo acabou e saqueadores continuam se encantando com jóias, dinheiro e aparelhos de televisão.

Tom Savini: “George, o que você acha do meu personagem entrar no filme de motocicleta, invadindo o shopping como se os mortos não existissem, ou sem me importar com o fato de que eles são azuis, pela minha inexperiência com maquiagem para cinema?”

Romero: “Claro meu amigo, aproveita para destruir a fortaleza dos personagens principais, sem roubar coisas úteis por puro capricho do seu coadjuvante desmiolado.”

Para falar a verdade, as atuações são ainda mais horrorosas do que a estética dos zumbis! É óbvio que o filme é cheio de elementos datados, como o o sangue que não tem a mínima pretensão de parecer real, as sequências super falsas de combate entre mortos e vivos, as perucas, o áudio fora de sincronia… Existe uma briga eterna entre lovers e haters do filme e eu reconheço as deficiências que desvalorizam este trabalho aos olhos de cinéfilos mais jovens, mas se você é um deles, faça um esforço para reconhecer as características de um verdadeiro épico do terror, que serve como um manual de sobrevivência e de estudo da dinâmica dos zumbis, assim como tem servido de planta baixa para qualquer filme de apocalipse desde então. É uma produção inestimável e não só pelas mensagens de caráter político, ou pela nostalgia que nos faz permanecer eternamente agradecidos ao homem pelo pontapé inicial no tema. O Despertar dos Mortos tem mais de duas horas e elas são muito bem preenchidas com uma história criativa, personagens divertidos e diálogos que fizeram história. Algumas sequências se estendem por tempo demais? Sim, mas você já viu Ben-Hur ou E O Vento Levou? Deixem o mestre contar a história exatamente do jeito dele… ele não teria muitas chances de fazer isto no futuro. Esta saga de Romero é didática como uma aula e o assunto é uma criação dele: mortos se levantando em massa, para atacar os vivos e dominar o mundo. Se você quer a porção emocionante, aceite a porção brega sem reclamar e sem fingir que o conceito por si só já não é absurdo, afinal de contas, nunca deixou de ser amado pelos fãs de terror por isso.