As imagens mais granuladas do mundo e a sensação de que assim que terminar, ele precisa ser rebobinado, me dizem que este filme é uma tentativa de superação de traumas de infância. Descobrir que ele se passa em 1995 e a pouca idade do diretor Kyle Ball, em seu longa de estreia, intensifica a minha suspeita de que estamos vendo algo autobiográfico, como um “baseado e fatos reais” de natureza pessoal, mas de que “fatos” estamos falando aqui? O que aconteceu de tão terrível na infância de Kyle, durante uma madrugada em que ele supostamente, com uma suposta irmã, acordou e não conseguiu encontrar os pais ou sair de casa; para que a experiência fosse marcante o suficiente a ponto de inspirar um filme de terror, mas vaga demais, como todas as memórias são, para relatar os acontecimentos detalhadamente? Lembranças de um encontro sobrenatural, pesadelo, ou uma imaginação fértil, este é um trabalho muito interessante e recompensador, mas também bastante experimental e nem todo mundo pode ter paciência para a suposta recompensa. 

É engraçado constatar que durante os créditos, que aparecem na abertura do filme, tem mais gente recebendo agradecimentos do que profissionais trabalhando na produção. Seria este um dos filmes mais baratos do mundo? Pode até ser, mas não se trata de um terror estudantil. Não é a coisa mais fácil, mesmo que a locação seja única, fazer um filme de época com um orçamento equivalente às economias de um assalariado. Eu me lembro do carpete em todos os cômodos, me lembro dos televisores gigantes que ficavam no chão. Porém, deixando de lado objetos que ainda circulam pelas casas de parentes e amigos, que cedem a cenografia e são agradecidos nos créditos, um trunfo técnico que vale a pena ser mencionado, é a falsa iluminação natural. Não estou falando exatamente de noite americana, onde as imagens são captadas com bastante luz e escurecidas na pós produção. Eu falo de uma representação do que olhos sonolentos enxergariam, depois que  já estivessem acostumados com o escuro. O início do filme é assim, como se interruptor não existisse e há uma razão para isto, apesar de que no decorrer da história, ainda ficamos no escuro em mais de um sentido. Estamos confiando na visão de duas crianças assustadas e confusas. Na verdade, na narração incerta de um jovem que se recorda superficialmente daquela visão.

A primeira parte do filme (e eu só a compreendi quando o pai volta do hospital com o menino), acompanhamos Kevin de quatro anos, em um de seus episódios de sonambulismo. Ele tenta acordar a irmã, brinca sozinho, senta em silêncio, conversa com alguém e acaba caindo da escada… mas eu tenho a impressão de que vi a t.v. ligando sozinha! Bem mais tarde, Kaylee acorda, não encontra o pai, acorda Kevin que já havia sido cuidado e medicado e os dois percebem que as janelas da casa desapareceram. As informações que recebemos a partir deste ponto, são baseadas no entendimento que as crianças tem sobre o que pode estar acontecendo, unido ao pouco conhecimento sobre a dinâmica familiar naquela casa. Estando sozinhos, seria fácil entrar em pânico. Sendo tão pequenos, no entanto, é mais fácil ainda aceitar a fantasia, enquanto assistem t.v. e brincam em harmonia. De vez em quando, eles chamam pelo pai, como se o sumiço não fosse uma certeza e somente por ele. A mãe existe, mas Kaylee não gosta de falar nela. 

O personagem principal do filme é a casa, toda a casa, cada canto, com enquadramentos super fechados, nos quais algumas vezes é difícil identificar o cômodo e em mais vezes ainda nenhuma ação está acontecendo. Por muitas cenas o diretor testa a paciência com um desafio, de decifrar se o que passa na tela é um vulto ou somente um rabisco. Por quase todo o filme, é um rabisco e isso é infelizmente um convite para a desistência. Existe vida na casa além das crianças, ela é sinistra e mal intencionada, mas pode ser ignorada, se o público se distrair após mais uma sequência de close-ups de uma lâmpada, ou algo ainda mais trivial. Em diversos momentos, o filme tem apagões e eu saquei que pode ser as crianças caindo no sono, já que além do desenho na televisão, eles dormem muito, mas enxergando tão pouco, que com os ajustes certos, eu penso que o filme viraria uma ótima radionovela. Por ajustes, eu não digo somente adaptar para o radio, as poucas referências visuais que conseguimos observar com clareza… eu preciso reclamar que estes ajustes incluem uma edição competente de som, que deixe o áudio mais compreensível. Sem legendas descritivas, indicando de quem são os passinhos no escuro, ou o estado de espírito de uma das crianças, com sua “respiração ofegante”, eu não teria conseguido acompanhar ao filme. 

O trailer, que eu achei absolutamente brilhante, não quer enganar ninguém. A esquisitice da propaganda está todinha no filme, que parece um pesadelo que não termina nunca, com um desfecho bem competente. Isso é ótimo para o terror, mas só quando o público não se cansou na metade do caminho, ou logo no começo mesmo. Skinamarink é cruel e violento. Eu senti medo em diversas partes, mas confesso que também senti sono. Não é um bom sinal. Me impressionou bastante no entanto, o quanto o filme manifesta com economia de diálogos e nenhuma expressão facial, as características distintas e quase completas das personalidades das crianças, bem como uma sintonia entre os dois, que não deixam dúvidas sobre uma relação de irmãos de verdade. Nossa compaixão pelos pequenos que mal vemos, é presente do primeiro ao último minuto, com poucas oportunidades de respiro quando eles estão vendo um desenho na televisão e tudo parece uma questão de tempo, até que as coisas voltem ao normal. Vale ressaltar que as animações na telinha, são aquelas antigas que todos nós já vimos pelo menos uma vez na infância, mas elas não fazem parte da programação, estão em fitas de V.H.S e quando a gente presta atenção nelas, com olhos mais maduros, percebe o conteúdo surreal das narrativas, que costumávamos aceitar sem questionar décadas atrás, tão surreais quanto a situação de Kevin e Kaylee nesta história. Eu não descartaria a direção de Kyle no futuro, porque ele parece ser um cara muito imaginativo, mas entendendo que a interpretação dos acontecimentos, precisa estar o mais próximo possível das intenções dele para que o filme funcione bem, então peço que no futuro, ele não descarte profissionais que trabalham com nitidez. A menos que queira depender para sempre do closed caption.

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