O trabalho do diretor no movimento de câmera nunca é sutil. Desavisados, olhamos atentamente para uma ação corriqueira, como um senhor de idade sentado numa mesa fazendo anotações, mas a câmera se desloca para mostrar o banquinho vazio ao lado da mesa. Por alguns segundos, a escolha não faz sentido, até que uma subida revela a corda em cima do banco. Eu me pergunto se eu ainda teria a impressão de um bilhete suicida sendo deixado para trás, mesmo testemunhando ele sendo escrito, se a câmera estivesse parada o tempo todo, aberta, perdendo a minha atenção enquanto o idoso demora para acabar o texto e se levantar. Mas é mais do que ser o oposto de Michael Haneke, que adora fazer planos gerais esperando que o público descubra qual é o foco, na terceira ou quarta vez que assiste à cena. Com seus truques de filmagem propositalmente datados, seu ritmo sossegado (mas nunca rasteiro) e desviando consideravelmente do livro no qual o filme se baseia, Roman Polanski mostra que sempre foi um cineasta com voz e repleto de ideias interessantes para dividir conosco. Não há um momento em que ele não tem o nosso completo interesse.
Facilmente confundido com diversos filmes parecidos, inclusive alguns de terror de Johnny Depp, lançados mais ou menos na mesma época, O Último Portal foi injustamente ignorado em um oceano de produções sobre satanismo, com campanhas de marketing mais eficazes e rapidamente esquecido pelo público. Além de Johnny no papel principal, muito diferente dos personagens escandalosos que ele costuma interpretar, o filme conta também com o sempre intimidante Frank Langella, como um milionário dono de uma biblioteca extensa dedicada ao capeta, escondida dentro de uma biblioteca normal ainda maior; a belíssima e carismática Lena Olin, que é a femme fatale com ênfase no fatale, mesmo não sendo a única beldade perigosa no filme. Tem também a esposa de Polanski, Emmanuelle Seigner, que ele vive enfiando nos filmes dele. Ela faz uma personagem misteriosa, sem nome ou intenções claras, que mesmo acompanhando Johnny e salvando a vida dele em diversas ocasiões, ainda pode ser considerada uma inimiga, dependendo da interpretação de quem vê a história. Portal tem ainda Jack Taylor, que eu admito que não conhecia até então, mas a presença de cena do ator em um papel modesto é tão marcante, que eu tive que pesquisar sobre ele e acabei descobrindo que se trata de um veterano de filmes B, a maioria terrores também desconhecidos para mim.

Depp interpreta Dean Corso, um avaliador de livros raros, que leva muito a sério a verdadeira ocupação: a de arrancar sem violência, clássicos valiosos de donos que não entendem do assunto e são convencidos a vender as obras por mixaria. Um abutre literário que jamais chegou a ser um criminoso, mas que conseguiu através dos anos de canalhice, colecionar desafetos nos diversos ramos da profissão. Não é portanto um amigo que chega nele, com uma proposta lucrativa e desafiadora, é um cliente de longa data, ciente da reputação de Corso, mas confiante no parecer do perito. A obra a ser avaliada é Os Nove Portais do Reino das Sombras, um livro antigo muito famoso entre estudiosos e principalmente entre os devotos do coisa-ruim. A versão que Corso recebe, é uma de três sobreviventes de uma fogueira inquisitória, que queimou todas as outras junto com o ousado escritor. A lenda diz que a primária delas foi criada pelo próprio Satanás, com as outras sendo reproduções fiéis pelas mãos do cara que morreu no fogo. Somente a original no entanto, uma vez decifrada, garantiria uma audiência com o Diabo. O exemplar a ser examinado parece ser o verdadeiro, mas para o dono endinheirado dela, dono também do acervo diabólico dentro do acervo normal, somente comparando a cópia dele com as outras restantes, traria a certeza absoluta, então lá vai Johnny, com um cheque bem gordo e uma missão infernal pelas ruas européias.
O protagonista é cético, mas alerta para o perigo presente nos crentes que o cercam. Polanski sabe que não pode haver discrição neste departamento, exatamente porque o personagem de Depp não sentiria o medo necessário para se proteger, antes que fosse tarde. A câmera fica doida para nos mostrar que Corso não é bobo. “Viu só como ele percebeu que essa mulher estranha sumiu rápido demais das vistas dele? Sim, ele também se ligou que este cara despreocupado no jardim, só pode ter uma função importante para a madame que também quer os três livros.” Corso não precisa acreditar que o Nove Portais tem poderes sobrenaturais, para tomar cuidado com os que farão de tudo por uma chance de invocar o líder das trevas. A maior tarefa do personagem, é passar pela jornada que vai da descrença à fé, por pura sobrevivência, algo familiar ao diretor desde O Bebê de Rosemary, com uma diferença significativa em relação à jovem e amaldiçoada mãe dos anos 60: Corso só precisa convencer a si mesmo, do que todos ao redor já enxergam. Qualquer coisa fora do natural é uma coincidência, mas só até não ser mais. Quando a lâmpada ascende, ele fica tão envolvido com o mito, que ignora que os corpos aparecendo o fizeram tentar desistir do trabalho. Até a própria vida ele arrisca, algo inconcebível para um homem que era ateu até dias antes do desfecho… um desfecho manipulado pelo verdadeiro autor da obra, desde o início da jornada.

O Último Portal é uma produção de terror investigativo que, nas palavras de um anônimo online que eu cito com muito gosto: “faz a gente ter medo de gravuras”. É um filme que não pede exatamente uma sequência, isso seria desastroso, mas nos deixa com vontade de saber mais sobre o universo criado para a história. Eu queria que trechos do livro tivessem sido lidos, que os desenhos fossem explicados e o filme tem mais de duas horas de duração! A trilha sonora é marcante e as locações muito bem escolhidas, muito elegantes e de impacto duradouro, como a mansão sem manutenção do dono do segundo livro, o restaurante que serve de refúgio para uma tarde inteira quando a ameaça é persistente do lado de fora e é claro, o castelo com uma aparência surreal que serve de palco para o confronto final. É bom ver também que o diretor continua colorindo seus filmes, com alguns dos mais intrigantes e agradáveis personagens secundários, dos faladores e sorrateiros gêmeos idosos da livraria, passando pelo capanga do cabelo nevado, até a seca e quase militarizada secretária da dona do terceiro livro. É importante também que se reconheça Depp, que apanha, fuma, enche a cara e faz cara de desconfiado o filme inteiro, mas mantém a fala mansa, o volume baixo e as caricaturas familiares bem longe, por mais cativantes que elas sejam em outros filmes, sem o medo infundado de ser considerado o chato da produção.