Estava mais do que na hora, de outro diretor seguir os passos de Alfred e ter um programa para chamar de seu. Com o nome no título e tudo. O Gabinete é uma série antológica de terror e mistério, que lembra bastante (lembra só a mim, porque quase ninguém viu) Sexta-Feira 13 – A Série (1987-1990), que não nada a ver com os filmes, mas é sobre donos de uma loja de antiguidades, tentado quebrar uma madição de família, ao recuperar de volta um artefato possuído a cada episódio. O gabinete na série é um móvel palpável, de onde Del Toro retira de suas finamente talhadas gavetas de madeira, um objeto que pode ser como algo do dia a dia ou uma raridade. Uma peça com significado pessoal ou algo realmente extraordinário. Nesta primeira temporada, são oito episódios. Uns bons, outros nem tanto. Del Toro sempre esteve mais para o lado da fantasia do que o saudoso Hitchcock, mas ainda vale a pena assistir a série, que com sua abertura belíssima e produção grandiosa, foi dirigida e escrita por pessoas de nações diferentes e com talentos distintos, criando uma seleção interessante de interpretações do terror.

1 – LOTE 36 (Direção de Guillermo Navarro)

Se passa no início dos anos 90, como anuncia o pronunciamento de Bush-pai na televisão. Logo após a morte do dono do depósito de número 36, os responsáveis pelo armazém onde ele se encontra, realizam um leilão para se livrar das quinquilharias do morto. De acordo com as regras do evento, os ofertantes só podem espiar do lado de fora e por poucos segundos o conteúdo do lote, antes de começar a dar os lances, mas isso não desencoraja o povo na plateia desesperado para encontrar algo de valor. O dono do lance final e novo dono do depósito é uma dessas pessoas. Veterano do Vietnam, com sequelas no corpo e no coração, ele até encontra ítens caros no lote 36, capazes de mudar suas finanças para muito melhor, ou assim seria, se ele fosse um homem menos amargurado. 

Alguns vão reclamar do teor político ou do ritmo arrastado, mas é precisamente a lenta construção do suspense, tomando conta, eu diria, de mais de noventa por cento do episódio, com imagens e sons desconcertantes, uma atmosfera de perigo iminente e dois especialistas no material encontrado, fazendo um ótimo trabalho para impressionar o público (o protagonista infelizmente nem se abala), que quando o bicho pega, já está nos quarenta e cinco do segundo tempo e não há mais nada a ser feito. Não é bem sobre o final, é sobre a jornada, muito bem montada, até ele. Uma abertura satisfatória para a série e uma excelente atuação de Tim Blake Nelson como o detestável veterano.

2 – RATOS DE CEMITÉRIO (Direção de Vincenzo Natali)

Um habilidoso ladrão de covas do início do século vinte, encontra a sorte grande quando o mais recente morto de que ele tem notícia, está prestes a ser enterrado com objetos pessoais caros e raros. O único empecilho é a competição: inúmeros ratos de cemitério, organizados e ainda mais habilidosos, levando os ítens de valor cobiçados pelo ladrão junto com a corpo que servirá de comida. Um conto curto de terror gótico, com bastante atenção à direção de arte e até um pouco de animatrônicos nos efeitos especiais, homenageando os clássicos de terror grotescos de décadas atrás. Uma história sem direito à redenção, feita como alerta para quem gosta de mexer com o sagrado negócio que é o descanso final de alguém. 

3 – A AUTÓPSIA (Dirigido por David Prior)

Jimmy Carter na parede e algo me diz que todos os episódios serão de época. Este é o melhor da temporada, na minha opinião, um verdadeiro presente do diretor de O Mensageiro do Último Dia (The Empty Man – 2020), do qual falaremos em breve neste blog. Na história, uma pequena cidade está em luto, quando um homicídio em massa mata diversos trabalhadores de uma mineradora. A empresa, desesperada com a quantia a ser paga de seguro, envia um médico legista particular para realizar uma autópsia “favorável”, mas felizmente para viúvas e outros familiares em luto, não se trata de um pau-mandado corporativo. São dez corpos, incluindo o do assassino e o legista ficará sozinho durante a noite, em um necrotério improvisado para atender a alta e repentina demanda. Sem problemas…até que um dos corpos começa a se mover… a falar… e a colocar em prática um plano sinistro. 

Ótimas atuações de dois veteranos da arte, um deles até oscarizado, interpretando homens de verdade em uma narrativa inacreditável. Os personagens não tem estrelismos, mas brilham, em uma história rica e cheia de camadas. As cenas do exame dos corpos não economizam nos detalhes, mas sem grosseria. Tudo é realizado com muito respeito e de tão natural que é a apresentação do trabalho da necrópsia, do trabalho policial, dos diálogos  dos personagens, a impressão errada é que se trata de um drama, no qual um desfecho brutal jamais poderia fazer parte, mas faz. É um pesadelo!

4 – POR FORA (Dirigido por Lily Amirpour)

Anos 80, nenhum presidente, só o penteado imperdoável já revela mesmo. E a moda? Senhor! O pior era a pressão para se adequar àqueles padrões de beleza que não envelheceram nada bem… “grati-luz”. Uma Era com poucas referências fora da televisão, então o que passava na telinha não era apenas o popular, era o mandatório e qualquer um vivendo fora do padrão não era um revolucionário, era um ignorado. A garota menos popular do banco onde trabalha, Stacey, é uma destas pensadoras livres, com seus bichos empalhados e seu rostinho sem maquiagem. Ela não é uma adolescente impressionável, é uma mulher casada com um marido super atencioso, ela tem um bom emprego, mas basta um incidente ao lado de um bando de barbies, para ela querer fazer de tudo para se encaixar no mesmo modelo das outras, ou morrer tentando.

Por Fora é um episódio excessivamente longo para uma história tão previsível, mas apesar do tema ser batido, ele precisa ser algo para o qual séries como esta se curvam, como um serviço de utilidade em prol da comunidade, que precisa ser reforçado de tempos em tempos. É o episódio gatilho da temporada, feito talvez para os que ainda não formaram a própria identidade, aceitando os clichês do episódio sem tanta crítica, como se fosse um ritual de passagem. 

5 – O MODELO DE PICKMAN (Dirigido por Keith Thomas)

O terror neste episódio, eu devo admitir mesmo que não se trate de um dos melhores, é constante, pelo fato de que uma vez que alguém entra em contato com o mal, fica contaminado para sempre. 1.909, em uma escola de artes onde a competição é acirrada, o mais recente e bem mais velho estudante, chama a atenção da até então estrela da classe, pelas suas pinturas modernas e perturbadoras. Will enxerga em Pickman algo que ninguém mais consegue ver: um talento absurdo, a serviço de uma força sinistra. Anos se passam. Os dois se tornam homens de sucesso. William com dinheiro e influência e Pickman com criatividade. Quando o pintor sombrio ressurge com trabalhos ainda mais macabros, Will faz de tudo para impedir que Pickman exponha seu trabalho para um público maior. Ninguém mais pode ver o que ele não consegue esquecer.

Crispin Glover é ótimo, sempre foi, mas quando seu personagem é o vilão, ele fica sensacional. Esta é uma das histórias que mais me deu medo, mesmo que, ironicamente, eu a considere a menos inspirada do conjunto. Essa impressão que eu tenho, pode ter surgido quando comecei a imaginar (como se tivesse descoberto no meio da história) um final um pouco mais arrepiante do que o que tivemos. O episódio ainda vale muito pela atmosfera aterrorizante, criada pelos quadros e ótimas sequências de sonhos. 

6 – SONHOS NA CASA DA BRUXA (Dirigido por Catherine Hardwicke)

Walter perdeu a irmã gêmea quando os dois ainda eram crianças. Adulto em uma época antes da segunda grande guerra, ele se filiou a um grupo de espiritualistas para investigar fenômenos paranormais. Mas o campo de estudos está tão saturado com falsos médiuns e charlatões, que não é de se estranhar que seus companheiros não tenham o mesmo entusiasmo pela causa que ele tem, depois de tantas decepções. Walter segue firme, até encontrar a resposta para suas perguntas em uma droga clandestina, capaz de abrir um portal para o mundo dos mortos. O problema é que o jovem não quer apenas ter a certeza de que a irmã está bem do outro lado, ele quer que ela retorne com ele. 

O que a menina morta fez para ficar naquele limbo medonho? Por que a casa de uma bruxa condenada por diversas maldades, foi preservada e serve de moradia agora? Por que esse rato tem rosto humano? Sonhos na Casa da Bruxa não faz sentido algum. Nenhum. É um episódio tão bagunçado, sem preocupação com convencer ninguém, nas explicações e nas atuações, que eu me pergunto como pode ter sido inspirada por H.P. Lovecraft. Uma história de fantasmas, bruxas, drogas e ratos falantes que é bobeira pura e bobeira nunca foi problema para mim, contanto que me entretenha. Nem isso!

7 – A INSPEÇÃO (Dirigido por Panos Cosmatos)

Personalidades de várias áreas, quatro no total, bem sucedidas em seus campos de atuação e famosas por terem sido chamadas para participar de programas de tv, em um ou mais momentos de suas carreiras, recebem o exclusivo e raro convite para visitar um poderoso e excêntrico milionário, que se tornou recluso nos últimos anos, na magnífica e secreta casa dele. Em uma noite de setembro de 79, a conversa vai do científico ao espiritual, com álcool, drogas e qualquer outro estímulo que o anfitrião julgue necessário, com os sintetizadores dominando a trilha sonora, mas por muito, muito tempo, se trata de uma reunião inofensiva. Resta apenas o motivo para a convocação, que nada mais é do que uma concentração de especialistas em vários assuntos, porque o dono da casa precisa de uma avaliação completa, de um item que ele acabou de adquirir, mesmo sem entender o que é ou para que serve.

Outro em que o caminho percorrido é mais importante do que a linha de chegada, por mais que o episódio termine, este sim, cheio de inspiração e com aspiração de ter continuação algum dia. Como se aqui fosse apenas a história de origem. O objeto em questão não caberia no Gabinete que dá nome a série, o que acabou dando ao diretor de Mandy (2018), toda a liberdade para sair um pouco do tema e ainda acrescentar um toque de Cronenberg na sua criação. 

8 – O MURMÚRIO (Dirigido por Jennifer Kent)

Anos 60, eu presumo e atores conhecidos do terror, no último e mais belo episódio deste ano. Com o patrocínio de generosos investidores e o apoio de toda uma comunidade de ornitólogos, um casal de experientes estudiosos, viaja para uma ilha e se instala em uma casa gigante, muito bem cuidada, para tentar decifrar um grande mistério: como os pássaros realizam com tanta destreza e precisão, aquela coreografia encantadora no ar? Sem pressa alguma, somos apresentados a uma presença sobrenatural na casa, ao mesmo tempo e com a mesma introversão que entramos em um casamento em crise.

O Murmúrio é uma história onde sentimos mais medo de uma separação entre os cientistas, do que qualquer coisa que possa assombrar aquela casa. Sem culpas, sem vilões, apenas muitas palavras esperando para ser ditas, é um drama de primeira com o terror no escanteio, mas não sentimos muita falta dele. Um episódio que vai crescendo em tensão, sobre o desgaste da alma e nós sabemos que algo terrível aconteceu com o casal, assim como sabemos que algo ainda pior aconteceu na casa, mas agradecemos a talentosíssima diretora de ótimo Babadook (2014) e do difícil de assistir The Nightingale (2018), por ela ter nos poupado dos clichês de qualquer dos dois gêneros, para nos contar sua história. 

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