Eu tenho um certo medo de ser uma anta, de ver significado demais onde não existe, mas creio eu que isso faça parte do trabalho da análise de qualquer assunto. O lance é que eu absolutamente idolatro dois cineastas que quase ninguém conhece, Aaron Moorhead e Justin Benson e eles não só são semi-novatos com filmes esquisitos, como nem se comprometem totalmente com o gênero que sustenta este blog. Eu me sinto quase parte da família de ambos, tamanha é a sintonia, o que me faz questionar por que eles não tem mais fãs e apoio na indústria. Eu nem pesquiso trabalhos futuros da dupla, para não estragar a surpresa de ver um pandemônio de ideias, executadas ao mesmo tempo com ousadia e sem pretenção, e descobrir que se trata de uma nova produção deles. É sempre uma viagem em forma de filme, pequenas mini-férias de duas horas, restando apenas saber a quantidade de maionese envolvida. 

Este é o trabalho mais hollywoodiano deles, com atores conhecidos, produção bem maior do que o de costume, mas nenhuma mudança no estilo de filmagem. Na história, Steve (Anthony Mackie) e Dennis (Jamie Dornan) são dois paramédicos e amigos de longa data. Na primeira emergência que vemos, envolvendo mais de uma overdose no mesmo local, a câmera se move sem cortes em um cenário realmente caótico. O motorista da ambulância erra o endereço, a polícia chega com informações erradas quase causando mais um acidente e um dos profissionais, vindo direto do rolê, nem uniformizado está! Ou seja, é uma noite qualquer para os dois, exceto por alguns detalhes, como um dos pacientes com um buraco que atravessou o corpo, feito por uma espada, autêntica e também presente na cena do crime.

É interessante que os protagonistas sejam da área da saúde, em que os turnos são ainda mais imprevisíveis do que seriam em um hospital e perigosos, por se passarem fora dele. O filme é uma roleta russa de tretas e, com o perdão dos indispensáveis bombeiros e policiais, mas a necessidade neste conto é de gente que não trabalhe necessariamente para prevenir. Dennis, com suas escolhas e suas filhas com 17 anos de diferença, não anda muito bem emocionalmente. Steve, que era sossegado por ter feito escolhas diferentes, de repente se encontra pior do que o amigo. Ao redor deles, nas ruas repletas de história em Nova Orleans, a molecada está morrendo, ou pelo menos, tendo as piores experiências possíveis após tomar Synchronic, a droga sintética e legalizada mais popular do momento. Em outra chamada profissional envolvendo mais adolescentes festeiros, eles descobrem que a filha mais velha de Dennis consumiu o produto e desapareceu. Eu não estou dizendo que Brianna ficou confusa e saiu perambulando sem rumo, ela realmente sumiu do mapa. É a deixa para que os paramédicos parem de disputar quem tem a vida mais sofrida e encarem o problema como melhor sabem fazer: preparados para qualquer bizarrice. 

Os caras são muito criativos, sempre foram. Não os profissionais da saúde, os criadores. Benson e Moorhead, novamente compartilhando a direção de um roteiro maluco de Benson e com a fotografia competente de Moorhead, nos convidam a imaginar que a realidade, ou melhor, o tempo no qual ela se desenrola, seja uma ilusão. Não se nota imediatamente, mas a edição força essa teoria, removendo a aparente simplicidade do que era para ser uma das criações de mais fácil digestão desta dupla. Meus meninos tendem a ser mais tradicionais quando não atuam nos papéis principais. A partir do momento em que Brianna sai de cena e até a construção dessa frase é um problema, porque não sabemos até que ponto podemos confiar na ordem em que os eventos são mostrados, o filme dá uma mexida na própria timeline e o que era surreal, vira o novo normal. 

O fabricante da droga até aparece no filme, do nada, oferecendo algumas explicações e indiretamente desencadeando uma investigação informal, porém séria e muito cativante, que conduz os acontecimentos na segunda metade do filme, mas ainda se trata de uma doideira típica de Aaron e Justin. Eu não quero revelar muita coisa e estragar a ótima experiência que eu tive quando vi pela primeira vez, que foi a de acompanhar a história sem ao menos ter visto um trailer do filme, já que em muitos casos, especialmente nos que envolvem estes cineastas, a ignorância causada pela falta de informações é uma bênção…mas, vou dizer que um plano para trazer a jovem para casa é colocado em ação. Seguindo a investigação, eu diria que as chances de sucesso são boas. Conhecendo outros trabalhos dos diretores, no entanto, eu não contaria com um final feliz, pelo menos não para todos os envolvidos.

Jamie Dornan está bem, mas o show é todo de Anthony Mackie, que domina discretamente todas as cenas que os dois dividem. Claro, como é dele a iniciativa e a execução da experiência que tenta encontrar a filha do amigo, suas cenas são as mais importantes, mas eu acredito que se os papéis tivessem sido invertidos entre os atores, nosso envolvimento com o filme seria diferente. Os personagens não podem cometer erros, erros são fatais neste filme, assim como não dá para bobear quando o que está em jogo, é o maior projeto cinematográfico até então e eles não bobearam. Sem fazer feio para as visitas, mas sem comprometer suas visões intocadas pelo cinismo, Benson e Moorhead me surpreenderam novamente. Sem medo de dizer para um público maior que nostalgia é uma besteira e que o presente é uma dádiva. Sem medo de dizer que não é só porque uma pessoa é novinha que ela não corre tanto perigo, ingerindo o que não deve.

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