Se existe um aspecto a ser considerado o mais curioso, em um filme cheio de alegorias, é que a comida, que não é o foco central, é o único foco; é preparada diariamente por mãos altamente treinadas, talentosas e preocupadas em servir as receitas mais apetitosas, usando os melhores ingredientes. Luvas, chapéus e aventais são indispensáveis. Além da degustação, há uma checagem geral de cheiro e apresentação da montagem dos pratos. Todas as proteínas estão disponíveis, além de sopas, frutas frescas e sobremesas dignas de confeitarias que cobram o olho da cara. Com o passar das cenas, eu desconfio que a quantidade disponível jamais saciaria todas as fomes pretendidas, apesar de ser muita comida, mas esta não é a única injustiça, em um filme cheio de comentários políticos. É o cuidado excessivo com a higiene e a apresentação, como se fosse algo para ser admirado por terceiros, quando os organizadores do banquete sabem, que a imagem é o menos importante para os consumidores reais e aquele capricho todo pode não sobreviver por mais do que cinco minutos.

O Poço é a estreia na direção de longas do espanhol Galder Gaztelu-Urrutia, que em uma obra prima do comentário social, que não poupa anarquistas, socialistas ou capitalistas, permite que a mensagem captada esteja “ao gosto do freguês” e que seja saboreada sem parecer uma pregação. Brutal na execução e sutil no significado, para que cada um enxergue o que quer, como sempre foi com qualquer coisa em uma sociedade composta de indivíduos diferentes. Galder não quer mudar o mundo. Se você puder apenas olhar para as situações que ele cria, pelos olhos cínicos dele, eu acho que o diretor já ficaria feliz. Porque ele é um fatalista (e como é divertido ter um desses no terror de vez em quando), sem aspirações de aproximar os lados, apenas nos mostrando que os lados estão sujeitos à natureza humana. Portanto estamos ferrados, não importa a escolha.
Se pelo parágrafo acima, você já está me classificando como uma “EnCimaDoMurista”, vamos a algumas observações: os que estão acima recebem mais, os que estão abaixo recebem menos e os que se encontram nos níveis inferiores, não ganham nada. Clássico dos popularmente classificados como… selvagens, não é mesmo? Só que não é tão simples. O Centro Vertical de Autogestão, como é definido oficialmente, é exatamente como o nome o descreve. Os administradores se certificam de que o suprimento seja abundante, delicioso e servido com limpeza, a distribuição é responsabilidade do povo, sem julgamentos ou consequências. Na verdade, para que seja o mais justo possível, a chefia cuida para que o tempo de consumo não ultrapasse dois minutos por indivíduo e para que nada seja estocado nas celas. Ninguém passa mais do que um mês no mesmo andar e pode ser elevado ou rebaixado, de um mês para outro, para que não existam favoritismos. Ainda parece o mesmo sistema político? Até mesmo o fator da inadequação, presente em qualquer sociedade, é representado por uma mulher que não se sujeita às regras e vive no nível que quer. A loucura ou o niilismo a mantém na berlinda, mas nunca fora do jogo.

A estrutura do local, que não é exatamente uma prisão já que alguns participantes são voluntários, pode ser vista como um prédio muito alto e muito estreito. Dois habitantes por cela, uma cela por andar. Pelo número cravado na parede, dá pra saber em qual andar estão e o quão sortudos serão naquele mês. É possível levar um objeto, que pode ser uma arma qualquer, apesar de que o protagonista do filme, um voluntário sem nenhuma noção do que o espera, leva um livro. Dom Quixote. Cada piso tem no centro uma boa porção faltando, em formato retangular, para que a plataforma com comida passe por cada cela. Se houver moderação na alimentação da primeira centena de andares, existe uma chance de sobrar comida para os que estão nas outras centenas, mas isso nunca acontece. Passar um mês ou dois, recorrendo às formas mais degradantes de sobrevivência, não desperta o mínimo de solidariedade nos que ascendem posteriormente aos andares mais privilegiados. Ninguém no alto come apenas o suficiente para matar a própria fome. O que os poucos esperançosos dessa história descobrem, é que apenas o medo da retaliação poderia resolver o problema. Remova a escolha, se quiser que todos comam. Isso não é tudo. Numa jogada de mestre de Galder Urrutia, vemos que os beneficiados temporários chegando no topo, constatam uma realidade da qual os Titãs já estavam cientes faz tempo: A gente não quer só comida!

Os nomes dos personagens são tão incomuns que incentivam uma pesquisa. Goreng é um prato asiático, Baharat, outro personagem, é um tempero. É uma experiência sobre necessidades primárias, com pessoas de todos os tipos, sem garantias sobre a integridade física e moral de ninguém. Temos entre tantos o cínico, a idealista, o fugitivo e o próprio Dom Quixote, louco para se tornar o herói do filme, mas sem muita idéia de como por em prática seus planos de salvação. No final, ele e Sancho Pança se enchem de coragem e embarcam em uma fantasia de altruísmo, tão repleta de violência que se perde no caminho plataforma abaixo, trocando seis por meia-dúzia. Era a solução sonhada pelo leitor, com quase nada de funcional, mas não dá nem pra dizer que a decisão é equivocada. É uma dramatização reduzida, mas é complexa como a realidade na qual se espelha. Não existem alternativas simples para problemas complexos. Qualquer um que chegue em você com uma salvação fácil e unilateral, está mentindo.