Não adapte o cinema aos comics… faça o contrário!
Antes de Matrix, Keanu Reeves era visto como um bonitão inexpressivo e cheio de sorte. Depois da decepção que foi a trilogia, o ator corria o risco de se tornar o mesmo bonitão inexpressivo, só que fadado a papéis secundários em blockbusters ou papéis principais em filmes que ninguém vê. Aí veio Constantine e com isso a chance de mostrar ao mundo que o ator era mais do que um rostinho bonito com um agente competente, que vivia colocando o cara em bons filmes. Ele nunca havia sido genial na profissão, mas Constantine é onde ele mostra o carisma de uma estrela que poucos atores bons têm. Keanu conseguiu encher de vida e personalidade um personagem moribundo e desmotivado, sem remover o sarcasmo e o desprezo por qualquer coisa que não seja de seu interesse imediato. John Constantine é um herói que negligencia, trapaceia, destrói e não se importa com o que pensam dele. Não existia ninguém mais apropriado para estar na sua pele, do que um homem volátil na profissão, mas firme na vida real, que precisou ignorar respeitosamente o que os críticos diziam dele, para seguir trabalhando. O currículo de Keanu é tão impressionante que eu não posso chamar Constantine de seu melhor filme, não é nem mesmo seu melhor terror, mas posso dizer que esta é sua melhor atuação.
Baseada nos quadrinhos da D.C. Hellblazer, a história fala de um médium que vai para o inferno após uma tentativa de suicídio, retornando com poderes especiais e a tarefa de manter o que é divino no andar de cima e o que é diabólico no andar de baixo. Quando alguém é possuído por um demônio, eles chamam um exorcista. Quando o exorcista não consegue dar conta do trabalho, ele chama John Constantine. Um fumante constante e irrecuperável, John está morrendo e por ter sido um suicida, sua alma está destinada ao mesmo lugar para onde ele envia os que tentam “subir” para o nosso mundo. O futuro não é promissor, mas eis que surge pedindo ajuda, uma detetive que acabou de perder a irmã gêmea, sob circunstâncias que ela acredita serem sobrenaturais e John, que pisa com cuidado no mundo normal, mas caminha com segurança em um território que ninguém acredita existir, se torna o único capaz de conectar a abundância de acontecimentos místicos dos últimos dias, a um suposto evento com o potencial de destruir a humanidade. O filme foi um sucesso, mas os fãs dos comics não aprovaram a adaptação, o que é uma pena porque, mesmo tendo um roteiro bem amarrado e fechado, havia uma possibilidade real para pelo menos uma sequência.
Com Keanu completamente confortável em sua pele, John era um cara que só antecipava a atenção extra que teria de seus desafetos após a morte, até que uma guerra santa se aproxima mudando o foco do canceroso e do filme. O engraçado é que agora, revendo Constantine depois que filmes sobre super heróis se provaram uma categoria extremamente lucrativa, eu estranho que o máximo de firulas que a gente tenha na introdução, sejam os logos dos estúdios ardendo como se estivessem no inferno. Onde está aquele desenho animado no estilo do material em que o filme se baseia, que explica desnecessariamente as origens dos contratos divinos e das brechas que permitirão as violações, abrindo o filme de um jeito que fará ele envelhecer com menos elegância e mais rápido em pouco tempo? O filme nos poupa da vergonha futura e resume o que precisamos saber antes da história começar, a uma profecia de duas linhas sobre um punhal sagrado e mais duas linhas sobre onde o instrumento foi visto pela última vez. Aparentemente, o objeto libera algo que nem John pode conter, o que perturba o acordo de neutralidade entre os lados envolvidos, nos fornecendo uma história divertida e multi-facetada, mesmo que mostrada de maneira enxuta. Quem não sabia que se tratava da adaptação de um gibi, simplesmente curtiu um ótimo filme de terror.
Constantine é um filme muito criativo visualmente. O inferno não fica só na promessa, ele é mostrado mais de uma vez e a direção de arte é… bem… um deleite para os olhos! É rico em personagens secundários cativantes e subplots interessantes, que não dão a impressão de terem sido inventados de última hora, para servir um roteiro incerto de onde quer chegar ou como. A fotografia é escura, mas nunca ao ponto de força a imaginação a compensar pelo que não estamos vendo. Eu acredito que o objetivo, era adiar o máximo possível que os efeitos visuais ficassem obsoletos, porque são muitos. A sequência em que um demônio poderoso atravessa uma área rural, provocando o colapso sistemático de todos os bois (ou búfalos) pelo caminho, me faz tentar buscar um termo mais erudito para me expressar, mas eu vou com “do cacete” mesmo, ainda que eu não tenha certeza do tipo de animal em cena. Quando não há um anjo ou um capeta por perto, a atmosfera é a de um filme policial noir das antigas, mas adaptado por objetos modernos e sujeira para parecer contemporâneo e menos sofisticado. Nosso herói escuta jazz e mostra o dedo do meio pra figuras bíblicas. Ele, como o filme, é o nosso maloqueiro refinado.
Dirigido por Francis Lawrence, que faz filmes por diversão e videoclipes para pagar as contas, Constantine é um terror-político com intrigas e traições dignas de Game of Thrones, do bem contra o mal, do bem contra o que pensa ser o bem e do mal contra o que é ainda pior. Cheio de simbolismos nada sutis e muito bom humor, o filme tem diversas cenas sensacionais que não recebem o crédito devido, não pelo efeito, mas pelo conceito, como a primeira aparição do diabo em carne e osso, ou a adaptação do aparato anti-incêndio, no salão cheio de demônios e a sequência em que John tenta alcançar na corrida, a detetive que está sendo sugada pelas paredes de um prédio em alta velocidade. Este era o convidativo desfecho do trailer na época. O elenco é de primeira, incluindo o subestimado galã no papel principal. Com um pouco mais de apoio, poderia ter sido uma saga de sucesso, mas talvez seja melhor assim. De vez em quando, é melhor deixar um personagem morrer cedo no cinema, do que arriscar a reputação dele em continuações muito inferiores. Não é verdade, Neo?