Ciência e espiritualidade lutam pela alma de uma jovem.
“Inspirado por eventos reais”, este é o quarto filme da série Dabbe de terror turco do diretor Hasan Karacadag, que explora a popular lenda dos jinn, supostas entidades malignas que querem trazer a destruição para o planeta, uma família/vila por vez. Não tem problema em ignorar os anteriores, porque cada um tem uma história diferente. A estrutura do filme, talvez por seguir uma tal história verdadeira (e esse debate não se encerra com a palavra do diretor), é um pouco fora do comum, mostrando os personagens principais em uma verdadeira saga, cheia de acontecimentos paralelos, que apesar de enriquecerem bastante a história principal, são necessários mesmo para fazer parecer que, por ser tão repleto de detalhes, sem pular por exemplo a exposição de uma refeição que não será saboreada ou nenhum elemento da numerosa macumba enterrada na casa da possuída, este filme só pode ter sido concebido mediante depoimentos dos envolvidos.
Como o terceiro Dabbe este é um found footage, apesar de não respeitar completamente as regras da categoria, mas como se trata de um filme em que espíritos tem a capacidade de mover objetos, vamos presumir que planos de câmera feitos com muito profissionalismo, são o trabalho de algum cinegrafista morto e saudoso pela profissão. Assim como Dabbe 3 (que você encontra no youtube junto com o 1 e o 2), A Noiva Possuída (que você encontra no Netflix junto com o 5 e o 6) também se inicia com uma figura de autoridade sendo interrogada pela polícia, por nos anos 80 ter falhado em socorrer devidamente uma vila inteira, que sucumbiu a uma série de problemas como graves doenças mentais, episódios de violência e bebês nascendo com deformações absurdas. Eventualmente, não sobrou ninguém no local e o responsável pela saúde da população também era questionado sobre a falta de um laudo conclusivo para tanta tragédia. Enquanto só escutamos a voz nervosa do médico e a frustrada do policial que o interroga, velhas publicações de jornal sobre o vilarejo Kibledere aparecem na tela, com imagens assustadoras que mostram crianças desfiguradas e mortes em dezenas. Anos mais tarde, em uma cidade próxima, uma mulher surta na preparação do próprio casamento e o entendimento é que não apenas se trata de um episódio de possessão, já que pelas origens da família da noiva, todos acreditam que os demônios estão atando os nós deixados para trás em 1986.
A psiquiatra Ebru requisita a assistência de um curandeiro, mesmo acreditando que o que ele fez na frente dela foi um grande espetáculo, realizado com a assistência de uma assombrada contratada para o show. O objetivo dela, com um bando de câmeras a tiracolo, é provar que a noiva Kubra, sua grande amiga de infância, está muito doente e precisa de ajuda especializada, mas como os jinns estão tão enraizados na cultura turca, como os responsáveis por todos os males sem explicação plausível que atingem a população individual e coletivamente, e eu não ficaria surpresa se o povo tivesse o hábito de descartar até o que é esclarecido cientificamente para culpar a entidade sobrenatural, Ebru precisa documentar o “mestre Faruk” tentando resolver o problema ao modo dele, para que ele obviamente falhe e ela obtenha a permissão da família para internar e tratar Kubra. Esta é uma paciente que ela conhece, que nunca encontrou o homem que ela considera um charlatão por boa parte do filme e em um ambiente que ela pode controlar melhor, então as condições para o segundo exorcismo que vamos ver no filme mudam muito. Eu não posso culpar Ebru, por mais que um filme de terror sobrenatural não seja possível sem … o sobrenatural, porque Faruk tem métodos um pouco suspeitos e mora em uma belíssima casa de alto padrão. Faça as contas, pelo ponto de vista dela.
A Noiva Possuída é, conscientemente, uma verdadeira aula sobre os jinns, como se passando da metade das sequências, o diretor já estivesse seguro para exportar um vilão que o mundo inteiro deva temer. Demora para chegarmos até a noiva, demora mais ainda para chegarmos na inevitável Kibledere e no caminho, Faruk é o cara das respostas, oferecendo suas crenças e o que ele considera serem evidências de um mundo inverso ao nosso, repleto de criaturas que vivem da dor. Ebru em contraponto, é a mulher das dúvidas, com perguntas que todos deveríamos fazer com mais frequência ao assistir os filmes de terror sobrenaturais. O maior mérito do filme, é a ênfase dada do início ao fim, ao nível de responsabilidade que as vítimas de maldições possuem em relação às condições nas quais se encontram. É um demônio que destrói os inocentes, mas são os inocentes quem atraem o mal com ações lúcidas de perversidade, motivadas por inveja e raiva. Pela primeira vez o roteiro diz o que eu sempre quis ouvir em um filme de possessão: nenhum demônio é mais forte do que os humanos que ele habita.
O filme utiliza um truque nada original de vez em quando, que é um supercut com poucos frames de cada imagem, todas fantasmagórica, muito rápidos para serem analisados com cuidado, mas o recurso funciona para perturbar o público. Com isso em mente, dos que eu vi desta série até agora, Dabbe 4 não é o mais assustador (mesmo dando muito medo), mas pra mim é o mais interessante. As atuações são realistas e a condução da história é inteligente, sem desespero para apressar os eventos e não fazendo o filme sofrer com um ritmo arrastado por conta disso. O diretor nos coloca entre uma história apavorante sobre exorcismos e o que quase pode ser encarado como uma reportagem investigativa, que nos mantém completamente investidos e sedentos por explicações sobre tradições e simbologias. Este é mais um bom exemplo de que existem cineastas na Turquia que merecem mais visibilidade. Em um determinado momento, o desfecho e tudo o que o envolve parecem óbvios, mas por ser um documentário falso, nós só vemos o que as câmeras de Ebru conseguem gravar. Não é um found footage somente porque o formato é teoricamente mais barato, é porque se não fosse, não seria possível nos enganar tão bem.