As bruxas estão soltas na Alemanha dividida.
Eu peço desculpas pela demora deste aqui, eu precisava ver uma versão com legendas completas. O inglês é até sossegado, mas a quantidade de alemão falado no filme, impossibilita a diversão dos apressados. Quando a bailarina Patricia entra no consultório do Dr. Klemperer (vivido maravilhosamente por Tilda Swinton, que ainda tem mais dois personagens no filme), ela presume que as paredes têm ouvidos e que tenha que usar uma língua para fingir que só tem futilidades a dizer na terapia e outra língua para tentar pedir socorro. A pobre acaba se descuidando e confunde os idiomas, apesar de que não iria fazer diferença e então, desaparece. Só que não é como no mundo de sonhos de Argento, em que alguém some e você até volta o filme pra se certificar de que não a alucinou, não, o diretor Luca Guadagnino, animado para fazer um remake digno da fonte de inspiração, está determinado a transformar este pesadelo em uma realidade repleta de consequências.
Susie Bannion é uma bailarina excepcional, por mais estranho que seja, considerando a origem isolada em uma comunidade Amish e a falta de instrução no balé clássico. Chegando na academia de balé Markos, seu estilo chama a atenção da Madame Blanc (Swinton novamente), a enigmática diretora da companhia, que rapidamente enche Susie de privilégios, que deveriam por direito ser reservados para os membros mais antigos. É com Susie, que aqueles entre nós que nunca deram muita bola para os movimentos abstratos da dança moderna, começam a desconfiar de que eles podem ser cheios de significados e que estes significados sejam sinistros. A primeira coreografia oficial protagonizada pela jovem, com a bênção de Blanc, provoca uma longa e perturbadora sequência de tortura na sala ao lado com uma bailarina mais antiga, que começou a questionar a maneira como as atividades são conduzidas na casa. Mais uma desaparecida, indicando que os novatos recebem tudo e os veteranos são descartados, assim como faz com que o Dr. Klemperer enxergue um padrão e se ponha a fazer mais no filme do que reforçar a ideia de que não há nada que Tilda Swinton não consiga fazer no cinema.
Seria uma tolice pedir pra que você deixe de lado o filme original, para apreciar sem expectativas ou culpa esta versão da história que é tão diferente. Não faça isso, Argento é o cara e ele está muito presente no filme novo. Compare mesmo, porque não tem problema. O primeiro Suspiria é um filme muito querido, uma fantasia cheia de cores e sustos, como uma visão quase romântica e conformada da maldade. Isso não diminui o valor, ou se apaga diante de uma visão mais melancólica, violenta e eu diria até mais estruturada, mesmo que o tempo longo do filme novo, deixe a impressão de que se trata de uma obra mais solta. Nesta homenagem que se sustenta muito bem sozinha sem se sobrepor à criação de Argento, as madames que comandam a academia de balé, parecem correr contra o tempo. Para salvar sua existência, é necessário um renascimento da grande líder, Madame Markos, o que faz da novata Susie o alvo de encantamentos e perturbações, ferramentas sobrenaturais indispensáveis para preparar um corpo que irá receber uma alma poderosa. O que ninguém pode esquecer, é que Susie sempre, sempre, SEMPRE quis ir para Berlin, para fazer parte da academia Markos e nenhuma outra, sonhando em realizar coisas que vão além da dança, sem que as madames tenham a mínima ideia.
Os anos 70 continuam na história e a direção de arte faz um trabalho espetacular, mas não está sozinha na ambientação. Os planos de câmera típicos, o zoom rápido e repentino e alguns efeitos especiais, sugerem que boa parte das filmagens parecem ter sido recuperadas daquela época. As roupas, os cabelos, a decoração, tudo é feito com um cuidado tão grande, que é menos sobre o multicolorido alegre da década atual e mais sobre os resquícios envelhecidos da década anterior, como deveria ser, em um país repartido e ainda se recuperando de uma guerra. Se durante aqueles meses Baader Meinhof estavam fazendo da Alemanha o centro do mundo, então é na Alemanha e não na Itália que as bruxas devem ficar e não existe espaço para discussão, elas são bruxas mesmo. Maliciosas e poderosas. Eu penso que a escolha pela dança, para mulheres que podem fazer tudo o que querem, seja talvez por este ser o meio perfeito para dar continuidade às cerimônias sagradas, com movimentos que parecem inofensivos, mas que são rituais transformadores e além de recrutarem participantes leigos, ainda apresentam o conteúdo do seu trabalho para um público inocente e pagante.
A fotografia e a trilha se adequam perfeitamente ao filme, tornando tudo belíssimo e apavorante, enquanto vemos todos os que se opõem ao covil se dando muito mal. No final, a sensação é a mesma nos dois filmes. Susie em 77, corria desesperadamente para a porta da frente, já o Dr. Klemperer em 2018, caminha para fora da academia com assistência e com a dificuldade de um idoso que acabou de testemunhar um ritual pagão cheio de sangue. Sejam mais rápidos por favor, eu penso, antes que mais alguma coisa horrível aconteça neste lugar. Mas espere! Suspiria 2018 ainda tem uma cena após o final oficial, em que fornece um pouco de conforto para um personagem secundário. Ninguém é esquecido no filme e essa minuciosidade não é um excesso, porque não há pressa para que a história chegue ao fim. Na verdade, quanto mais cenas, melhor e eu espero os créditos inteiros, ouvindo a bela voz de Thom Yorke, na esperança de ver mais alguns segundos de qualquer coisa que ainda queiram nos mostrar, neste filme longo e inesquecível sobre balé e macumba.