Um ser ao mesmo tempo mítico e de carne e osso.
Geralmente eu não gosto de músicas de suspense acompanhando os créditos iniciais, forçando a barra e determinando que começou a hora de sentir medo, antes de mostrar alguma coisa realmente assustadora acontecendo. Eu não quero ser avisada para me preparar, mas foi diferente com esta nova versão de Halloween e não só porque a gente já sabe o que esperar, mas porque a trilha que tocou no começo não era a oficial. Como dois produtores de Hollywood perseguindo uma estrela das antigas, dois jornalistas aparecem no manicômio para entregar a Michael Myers a sua máscara icônica. É hora de voltar ao trabalho! A primeira trilha não importa mesmo porque o que segue é um pré-filme, com imagens de bastidores de um vilão que é tocável, que é contido por correntes, que provavelmente usa o banheiro e está, pelo que conseguimos espiar pela nuca dele, precisando fazer a barba. A primeira cena do filme quebra a narrativa em duas, uma bem breve que nos coloca na posição de gente que está chamando Myers de volta para o cinema, e a outra que é o resto do filme, onde a verdadeira trilha e a abóbora decorada anunciam que o nosso pedido será atendido. Foi uma tática que derrubou a expectativa, para que o próprio público a levantasse novamente.
Eu perdi as contas de quantas sequências o original de 78 possui. Já teve Halloween ligando vilão e vítima por sangue, e esse parentesco foi aceito e explorado em outras sequências, por mais bizarro que parecesse. Já teve Halloween em que Myers finalmente matou seu alvo, já teve um em que ele era um tio de grande influência. Já teve um Halloween especial de aniversário (H2O, também conhecido como Halloween-água) e já teve até um sem o vilão principal. Mesmo cheio de continuações para seguir, o que este novo filme fez foi passar uma borracha em todas as histórias criadas nos últimos trinta e tantos anos, deixando só o original como referência. Foi a melhor coisa que eles podiam ter feito, já que esta franquia de terror era a mais bagunçada de todas, mesmo com Jason indo para o espaço. Onde estava Michael por todas essas décadas? Em um hospital psiquiátrico, não absorvendo nenhum tipo de tratamento. E a sobrevivente do agora único massacre? Laurie Strode, avó de um alvo em potencial, meio histérica, mas nunca errada, é quase uma esquecida, que nunca esqueceu e que se preparou para o retorno do seu inimigo. Se ele é a encarnação do mal, ela é a personificação do trauma psicológico, de uma final girl que fez parte de um dos maiores slashers de todos os tempos.
Então o que esta nova sequência, com aspirações de ser a única, traz de especial?Primeiramente, uma boa dose de tributo ao filme de 78, com Laurie recriando cenas que antes eram de Myers, para separar fãs casuais de especialistas. Um sinal da modernização, foi deixar de fora os adolescentes imbecis de cinema, que dizem coisas idiotas e facilitam o nosso desprendimento quando morrem, e trazer os adolescentes que fazem coisas imbecis na vida real, porque estão na faixa etária certa para isso. Estes sobrevivem e representando uma geração mais sensível, questionam o passado sem recorrer ao bullying, como o millennial que pergunta respeitosamente à neta de Laurie sobre o estilo de vida recluso da sobrevivente. Pois é Laurie, no grande confronto com o bicho-papão, você foi a vitoriosa, porque se recusar a viver sem medo? Falando nela, que bom que o look rainha do grito de Hollywood de Jamie Lee Curtis, com seu cabelo curtinho e bem cuidado, foi substituído por uma representação mais apropriada da idosa Strode, paranóica, desprezada pela filha e com mais o que fazer além de se preocupar com a própria aparência.
A noite de 31 de outubro sempre foi um grande playground para alguém como Michael Myers, pelo passe livre para o disfarce com máscaras e pela aglomeração nas ruas, incentivada pela brincadeira em busca de doces na porta de estranhos. Existe uma antecipação no ar, pelo grande encontro entre Laurie e Myers e este acontece, de uma maneira bem melhor do que eu esperava, mas Michael não parece ter pressa. A primeira morte é uma criança, mas ele pega adolescentes e adultos, em planos sequência, cenas cheias de cortes ou mesmo fora das câmeras, realmente aproveitando a data que é dele, que é do medo e não das fantasias elaboradas e insinuantes ou da diabetes precoce. Mais do que no filme original, o assassino mata qualquer um, em qualquer lugar que consiga, demonstrando que Laurie pode até ter vivido com Myers na cabeça por todos estes anos, mas que não é possível realmente saber o que se passou ou se passa na cabeça dele.
Mesmo que a linguagem de um slasher como este, não seja mais o símbolo apavorante do terror que foi tempos atrás, alguém como Myers, sempre à espreita, como aquele bichinho colorido escondido nos episódios da She-ha, acaba provocando a sensação de estar presente em todas as cenas, mesmo não estando. Se o plano é bem aberto e escuro, ainda que decorado com o tema fúnebre-zoeira do Halloween e com o foco em outros personagens, nossos olhos procuram a figura determinada, porém oca de Myers no fundo desfocado, porque ele já provou que pode surgir em qualquer lugar. Caminhando e ainda alcançando quem corre, atrás de um volante sem jamais receber aulas de direção, levantando após receber golpes letais. Os tempos modernos exigiam uma fuga do manicômio mais plausível e ela foi criada, mas não podemos fingir que estamos lidando com um vilão que respeita as mesmas regras que nós.
David Gordon Green dirige mais do que uma bajulação, quando coloca em cheque teorias antigas sobre o vilão da história. O antigo dr. Loomis, psiquiatra do filme original, que praticamente viu o assassino crescer, era um homem sem meias palavras. Ele estava certo de que Michael não era um ser humano e que a única cura pra ele seria a morte, mas Halloween 2018 quer mais respostas e entra em cena o dr. Sartain, com perguntas existenciais sobre a natureza do vilão. Michael Myers tem a capacidade de falar, mas escolhe o silêncio. Tem um rosto, mas escolhe a máscara. É como se a sobrenaturalidade fosse um estilo de vida, e o diretor permite que o novo psiquiatra faça o que for preciso para compreender Myers, porque ele mesmo quer entender, mas acaba se rendendo à teoria de Loomis, que na verdade era o diagnóstico de John Carpenter. Existe espaço no novo filme para muita coisa, como espremer três gerações de mulheres nas quatro décadas, que enfrentam o vilão em família e respeitam as teorias sobre ligações de sangue de sequências que foram descartadas. Existe espaço para ousar mais na escolha das vítimas e na realização das mortes e espaço para manter a cautela nas mesmas categorias. Espaço para a trilha original e para uma versão melancólica dela. Espaço para enfrentar com inteligência as ideias do primeiro filme e espaço para ceder a ele, provavelmente porque o original já tinha as respostas certas, mesmo não providenciando elas pra gente.