O melhor filme de macumba que eu já vi!
Este deveria ser um post de sexta-feira 13, de tanta superstição que carrega, mas não teremos uma data dessas por um bom tempo e não dá pra esperar, pois vendo o filme novamente depois de tantos anos, eu percebi que ele nunca saiu da minha cabeça. Sabe aquelas fotos cômicas do tipo “quanto mais você olha, mais engraçada ela fica”? Então, na superfície, A Chave Mestra é um terror sobrenatural não tradicional, ou seja, sem fantasmas, onde gente ruim coloca gente inocente em perigo. Quando nos aprofundamos mais na história, percebemos que este é um conto onde os papéis de opressores e oprimidos se invertem sem que isso abale a falta de piedade, com alguns dos vilões mais insensíveis e que conseguem piorar quando revemos porta retratos com fotos que passaram despercebidas e cenas iniciais que pareciam ter diálogos inocentes, mas que não resistem ao teste do conhecimento do desfecho da história. Quanto mais se pensa sobre as consequências dos maus atos, mais cruéis eles se tornam.
O filme se passa em um território americano que me fascina e me dá medo ao mesmo tempo. Eu sou louca pra conhecer Nova Orleans, mas não sei se moraria lá. A mistura das influências francesas e africanas se concentram nesta cidade de uma maneira muito atraente no povo, na arquitetura, na culinária e também na religião, que tomba para o lado menos divino de acordo com as circunstâncias e sem remorsos, o que me deixa com os dois pés atrás, mais do que os furacões ou os crocodilos dos pântanos. É um território que não só resistiu muito ao movimento pelos direitos civis nos anos 60, como ainda exibe fortemente os vestígios da segregação racial que o resto do mundo escolheu combater. É o local ideal para se obter uma atmosfera carregada de espiritualidade negativa, com histórias bem reais de terror escravagista e da luta dos escravos com a única arma disponível, a fé. No filme, a razão pela qual a dona da casa rejeita a nova cuidadora do marido enfermo, é que a jovem não pertence ao sul do país e não conhece os costumes, a história e não poderia “entender a casa”. Seria um grande problema para a proprietária, se a funcionária não respeitasse a história que o lugar carrega.
Seria uma desvalorização dizer que a enfermeira Caroline está somente acostumada a cuidar de idosos. Ela faz da profissão sua missão de vida, por isso, a rotina fria do asilo onde trabalha e onde perde pacientes que são substituídos rapidamente e sem cerimônia, já não lhe serve mais. Seu próximo paciente, aquele a quem ela irá proteger e de quem irá cuidar sem a interferência burocrática de uma instituição, é Ben, um velhinho com a fala e os movimentos debilitados, vivido pelo sempre maravilhoso John Hurt. Ben, que sofreu um derrame recentemente, mora com a esposa Violet, em uma dessas gigantescas propriedades da época da escravidão, que são passadas de geração a geração, até que sobrem poucos moradores para ocupar a quantidade exagerada de quartos ou manter as paredes da casa conservadas. Com a persuasão do advogado da família, também responsável pela contratação de Caroline, Violet aceita aos poucos a presença de uma forasteira na casa e entrega para ela uma “chave mestra”, permitindo acesso a todos os cômodos. Eu diria que para um filme de terror, o perigo parece relativamente baixo, sem violência, sem assombrações, apenas com ocasionais pesadelos e janelas batendo por conta do vento. Um terreno vasto cercando a casa, mas possuído por dois idosos, um deles no bico do corvo, sem muros altos e com muitas rotas de fuga… caso algo ruim aconteça. Tudo parece bem, em um nível de esquisitice aceitável. Exceto por Ben. O homem não está somente enfermo, ele está apavorado e Caroline percebe.
Todo filme requer imersão total por parte do público e quando se trata de terror, o trabalho tem que ter muito cuidado na hora de apresentar a fantasia, para que ela seja plausível ou pelo menos aceita, mesmo que seja impossível. Se quem assiste não se permite acreditar naquele universo de medo inventado por algumas horas, ele não funciona. A Chave Mestra exige um pouco mais. O filme cozinha público e protagonista em banho maria, enquanto nos alimenta mentiras que julgamos serem verdades e informações concretas que interpretamos equivocadamente. A gente precisa acreditar, que Caroline precisa acreditar em coisas impossíveis possam lhe fazer mal, caso contrário, ela não sofrerá os efeitos e o filme não existe. Para que seja um terror, todos nós forasteiros temos que ser transportados para dentro de uma história com a qual não temos nada a ver, crendo, sem dúvidas, que escravos tinham uma chance real contra seus senhores, por mais ilusórias que fossem as armas do contra-ataque.
O filme prende a atenção do início ao fim, com muita expectativa mas sem o mínimo de previsibilidade. Em retrospectiva, tudo o que era gentil fica falso e tudo o que dava medo era truque. Ben, com as articulações limitadas, segura firme no braço de Caroline em toda a chance que consegue, doido para pedir ajuda, mas sem a habilidade de se comunicar com clareza. Ela não se assusta e muito menos fica indiferente, arrumando uma atividade aparentemente benigna, que é a de investigar os eventos que ocasionaram o péssimo estado de saúde no qual Ben se encontra. É importante que ela tenha um espírito protetor e escolhido a terceira idade para cuidar, porque quem se doa demais acaba se esquecendo da própria vida, da própria segurança. Por isso ela é tão perfeita como protagonista, mas nem veja A Chave Mestra por ela. Veja pela arquitetura de casa assombrada por toda a cidade, pela água escura do pântano, pelo ar clandestino das lojas esotéricas e pelos medos tolos que você vai superar em prol de um muito mais merecedor. Eu nem cheguei a mencionar os dois melhores personagens do filme.