O apocalipse segundo um forever alone.

Sam está em uma festa em Paris no apartamento da ex-namorada. A torturadora emocional sabe que ele não conhece ninguém ali. Ela sabe que o atual dela adora demonstrar afeição em público e reforçar a marcação de território na frente dos outros, sabe também que isso incomoda o namorado antigo. Sam não estava ciente de que uma festa acontecia quando foi até ela, ele só queria os pertences que ela “acidentalmente” levou quando eles se separaram. Ela enrola pra caramba pra entregar ou até pra dizer onde as caixas estão, forçando Sam a ficar no local contra a vontade, beber, se irritar e quase brigar com o namorado atual, até que ele se tranca dentro do escritório dela e desmaia de cansaço. Foi o que salvou a vida dele! Enquanto Sam dorme, a gente olha fixamente para a chave e para a maçaneta branca que se destaca no centro da porta e das paredes escuras, escutando primeiro aqueles barulhos comuns em uma festa cheia de gente bêbada, depois alguns gritos preocupantes e a imagem de uma das convidadas vomitando no banheiro, ganha um sentido mais perturbador. O bicho tá pegando do lado de fora, quando e como tudo começou não fica claro, mas o importante é que durante as primeiras e mais sangrentas horas do apocalipse naquela parte da cidade, Sam está a salvo! Graças à falta de tato da ex dele.

Eu não quero estragar a experiência de A Noite Devorou O Mundo pra ninguém, mas acho que posso dizer sem revelar muito, que Sam passa bastante tempo sem trocar uma ideia com alguém no filme, mas que se tivesse companhia, fixa ou sujeita à variação, a palavra “zumbi” teria aparecido uma ou duas vezes casualmente. Isso porque o filme referencia muitos outros, sem atribuir crédito abertamente mas sem que isso pareça plágio,  já que o modo como Sam reage aos acontecimentos sugerem que ele é um fã de terror e que no universo em que o filme se passa, é super plausível que ele tenha assistido a Eu Sou A Lenda, Berlin Undead, Madrugada dos Mortos e muitos outros, de onde tira algumas de suas ideias de sobrevivência e de entretenimento. Quando abre a porta do escritório na manhã seguinte e vê o estrago que foi feito no apartamento, com uma quantidade absurda de sangue nas paredes e ninguém à vista para dar explicações, ele nem cogita gritar por socorro e já sai catando uma arma em potencial, meio que por instinto. Não existem erros por conta do amadorismo do protagonista neste filme. Sam é um de nós!

THE NIGHT EATS THE WORLD 1

A abordagem ao apocalipse zumbi é meio Berlin Undead mesmo, com a ação se passando quase toda dentro do apartamento, só que com a França ao invés da Alemanha como cenário e sem um amigo igualmente ferrado para suavizar o fardo que é o fim do mundo. A Noite…, pode ser considerado também uma continuação espiritual do segundo Extermínio, aquela que só ficou na promessa, já que Paris era pra ter sido o próximo local a sofrer com o vírus da raiva modificada na franquia e porque os contaminados deste filme aqui são igualmente rápidos. Não há como escapar do prédio, porque são muitos mortos e eles até sossegam quando não percebem nenhuma movimentação, mas quando correm em bandos, correm muito e não se cansam. No entanto, se Sam pudesse sair, eu não tenho certeza de que teria um lugar seguro para ir. Mesmo sem poder ir embora, Sam arruma um jeito de descobrir que a cidade está tomada, talvez o país inteiro também. Os ataques dos zumbis nunca ficam menos assustadores no filme. Um pequeno descuido de Sam que chame a atenção de um pequeno grupo, faz com que em poucos segundos uma multidão se forme na direção dele, ágil, forte e muito perigosa.

Para a sorte de Sam, o edifício da ex não é muito grande e ele conseguiu proteger boa parte do local, tendo a maioria dos apartamentos para explorar em busca de suprimentos e distração. É muito interessante como o filme lida com a solidão do personagem, que não fica somente poucas semanas isolado. Com o passar do tempo, Sam precisa ir se acostumando à falta de recursos básicos e ao colapso do mundo antigo visto pelas janelas e dentro do prédio, transformando o filme em uma espécie de guia prático de adaptação e sobrevivência, com algumas passagens bem realistas (e claro, outras nem tanto!) do cotidiano dele, tendo como foco um cara que não pode nem fazer um saque básico a uma quitanda na esquina. Até o tédio dele é envolvente. Suas frustrações, sua organização, o fascínio com os objetos encontrados entre as coisas dos vizinhos, sua necessidade de criar arte e a recorrente rendição nos momentos mais difíceis, aos acolhedores mesmo que poucos objetos que eram realmente seus desde antes de tudo aquilo. Um salve novamente para a ex que, coitada, nem imaginava o bem que estava fazendo quando empacotou e levou as coisas do cara por engano… Tudo no filme entretém e A Noite Devorou O Mundo consegue ser bem original, apesar de todos os empréstimos que tomou de tantos outros.

THE NIGHT EATS THE WORLD 2

Eu fiquei sabendo que existe um curta baseado neste filme. Sim, já! Uma homenagem de outro diretor que gostou de A Noite… e resolveu fazer uma mini história auxiliar, com quatro amigos saindo de uma certa festa e encarando o início de um surto de mortos vivos nas ruas de Paris, de dentro de um táxi. Parece ser muito legal, porque foi filmado em primeira pessoa e naquele esquema de realidade virtual, em 360 graus. De maneira alguma este filme pareceu desprovido de ação, a ponto de necessitar de complementos, mas eu ainda adoraria ver o curta, porque adorei o filme e uma visão paralela dos acontecimentos seria muito bem vinda. Também não é problema colocar a câmera nas ruas de Paris, quando A Noite Devorou O Mundo mostra predominantemente os telhados da cidade.