“Ele estava sempre cozinhando, mas nunca fazia compras…”

Se você conhece o mínimo sobre serial killers, você já ouviu falar em Jeffrey Dahmer. Nascido em 1960 e morto em 94 na prisão por um companheiro de cárcere, enquanto cumpria diversas perpétuas consecutivas, o “canibal de Wisconsin” matou 17 homens e meninos, fazendo depois tudo aquilo que nem queremos imaginar com os corpos, incluindo refeições. Por mais de uma década, o jovem tímido que se tornaria um símbolo de crueldade e insanidade, atraiu vítimas para o seu apartamento e por mais antissocial que fosse, não podia permitir que ninguém o deixasse, mesmo depois da morte, mantendo consigo partes diferentes de diferentes pessoas. Para sair do alcance de Dahmer, era preciso estar morto e ainda sim, ninguém sairia inteiro. Meu Amigo Dahmer é baseado nos quadrinhos autobiográficos de um ex-colega de classe do assassino, que se passam entre 77 e 78, na última série antes da formatura do colegial. Um ano antes do início das matanças.

É impossível pegar apenas um ano da vida de alguém, ainda mais uma das mentes mais doentias do século passado, para que este curto período explique a transição do jovem Jeff para a personificação do mal que ele acabou se tornando. O bom é que o filme nem tenta fazer isso, deixando claro entre fatos documentados e os relatos do próprio homem sobre a vida dele naquela época, que o filme tem uma grande dose das impressões que o comportamento do rapaz deixou nos outros. Sim, estamos mostrando muita coisa que realmente aconteceu, diz o filme, mas é importante que o público saiba que o Dahmer que aparece aqui, é aquele do qual nos lembramos e foi inevitável que a memória sofresse muita distorção, quando Jeff foi exposto e preso mais de uma década depois do colegial. Ninguém jamais o entendeu, nem ele mesmo, que em épocas diferentes de sua vida na prisão, atribuiu os assassinatos à loucura, à bebida e até à falta da frequência em alguma igreja.

MY FRIEND DAHMER 1

Um pouco parado e com sequências que parecem uma junção de recordações descontínuas, ao contrário de uma narrativa que progride a partir de um roteiro bem amarrado e didático, o filme apresenta um garoto introvertido e desengonçado, como todos nós já fomos em algum momento. No começo, se você assiste ao filme sem saber de quem se trata, pode até confundir Jeff com um adolescente normal. Ele era obcecado por ossos, mas sem violência, da mesma maneira como éramos obcecados por Mortal Kombat, papel de carta ou mola maluca. Jeff tinha uma família que era, mesmo com todos os problemas, absolutamente normal. Ele era realmente interessado em biologia, em como tudo funciona por dentro do corpo e teoricamente poderia ter seguido carreira na área. Sofre bullying, mas não é o único, nem o mais atormentado. Sofre com a mãe-problema mas nem de longe é o alvo principal dela. Não é o melhor aluno, mas também não é o encrenqueiro que carrega a arma do pai para a escola. Sim, tem um aluno que aparece de vez em quando, com todo o potencial para se tornar um criminoso agressivo, ao contrário do que era visto em Jeff. Mas depois de algum tempo, mesmo não sendo contada de uma forma convencional, a história força um distanciamento daquele moleque esquisito, até em quem desconhece a vida de Dahmer. Não é a falta de higiene ou a de socialização e eu juro, nem mesmo o ato de dissecar os animais atropelados que ele encontra, que chamam a atenção, ou seja, nada do que Jeff faz em público serve de alerta. Por outro lado, contemplar matar o cachorro que é dele desde a infância, sem nenhum motivo, é o suficiente para introduzir um leigo a sua mente terrível.

Para preservar o espírito de obra sem grandes pretensões, em relação a uma explicação plausível para um sujeito como Dahmer, os momentos críticos na vida do rapaz são super amaciados. Não há nada que diga: “Foi isso! Essa é a razão de toda a loucura!” O divórcio dos pais, por exemplo, não é mais significativo do que o dia em que Jeff começa a fazer folia no corredor da escola e chama a atenção dos garotos mais populares. De repente, Jeff tem amigos e é importante que este seja o grande marco do filme, por dois motivos. Divórcio é um acontecimento triste, mas comum e Jeff tem um irmão para dividir o fardo. Na vida real, a separação pode ter sido um tremendo gatilho para desencadear um comportamento mais destrutivo, mas seria insuficiente e banal em um conto sobre Dahmer. O filme então prefere nos fazer esperar pela conduta preocupante que irá afastar os amigos dele. Mas esse momento não chega antes do próprio Jeff dispensar a companhia de todos. A personalidade transgressora e inigualável de Dahmer transformou os amigos em fãs instantâneos, mas nem a idolatria segurou Jeff no grupo. A gente pode nunca saber o que transformou o menino em um monstro, mas o filme é categórico em apenas uma afirmação: não há nada que pudesse ter sido feito para impedir o fenômeno sanguinário Jeffrey Dahmer.

MY FRIEND DAHMER 2

Jeffrey – o canibal alcoólatra que era um exemplar irmão mais velho, precisava ser interpretado por um ator pelo menos bom, que soubesse manter o “olhar morto” por todo o filme, que Dahmer manteve por toda a vida. O estado de depressão constante era muito mais importante do que ser parecido com o dito cujo fisicamente. Eu fiquei surpresa em saber que escolheram (com sorte) um promissor ex-ator mirim dos programas da Disney Chanel. O novato Ross Lynch anda para cima e para baixo na pele de Dahmer, com uma atmosfera de tristeza que nunca passa e sem perder a mão nas cenas de surto falso que se tornaram épicas na escola. Eu também adorei ver Anne Heche, a atriz maluca que caçava ovnis interpretando a mãe maluca que também sai atrás de ovnis. Não dá pra ver o filme sem conferir online se certos eventos são reais, como a vez em que Jeff liga para o vice-presidente dos Estados Unidos, ou quando ele tirou um tremendo sarro de toda a escola, aparecendo no livro do ano, nas fotos dos clubes extracurriculares dos quais nunca fez parte. Há também aquela sombra que paira no ar, das coisas ruins que um dia irão começar a acontecer, quando os amigos falam de garotas na presença de um Jeff indiferente e a gente se lembra que todas as vítimas dele eram homens. É uma história real que fala sobre a prévia da carnificina, sem mostrar os corpos, mas nos fazendo sentir o peso deles.