A mais fiel descrição de um sociopata da vida cotidiana.

O protagonista faz coisas terríveis mas este filme de Jaume Balagueró (do fantástico Rec e muitos outros), não é sobre o que ele faz e sim sobre o que ele é. Quando se fala em sociopatia no cinema as referências são muitas, de Hannibal Lecter a Jigsaw, mas de acordo com diversos estudos sobre o assunto, a porcentagem de sociopatas no mundo é alta demais para não questionar a exatidão dos exemplos dados pelos filmes. Na ficção eles tem inteligência e força acima da média, compulsão por morte e passam um tempo absurdo construindo armadilhas inescapáveis para suas vítimas, mas e quanto aos insanos do dia a dia? Se todos fossem como Dexter, não ia sobrar ninguém, então como aqueles que não são violentos vivem a própria vida? É uma pergunta e tanto e Balagueró se arrisca a responder.

O diretor sempre escreveu seus próprios filmes, mas desta vez com o roteiro de Alberto Martini, ele deixa de lado o sobrenatural para entrar na mente de Cesar, um homem que inveja ao mesmo tempo que despreza todos ao seu redor, pelo simples fato de que os outros sentem e ele não. Interpretado pelo sempre ótimo Luis Tosar, ele é um cara com um sorriso eterno no rosto, quando, é claro, está na presença de alguém, e um desejo diário de se jogar do alto do prédio onde é zelador. Não se trata de depressão ou de qualquer outro motivo pelo qual pessoas comuns contemplem o suicídio. Cesar não tem nada a perder, assim como não tem nada a ganhar. Não tem uma causa pela qual lutar, nenhuma ideologia. Não há ninguém em sua vida e não haveria diferença se houvesse, porque ele não se interessa por relações humanas. Nenhum apreço pelos amigos, nenhuma preocupação em manter o emprego e nenhuma forma de arte capaz de tocá-lo. É uma existência miserável, mas não sinta pena logo de imediato.

MIENTRAS DUERMES 1

Logo no início, já existem indícios de que o zelador está aprontando com os inquilinos, mas eu só notei a cena em que ele acorda em um apartamento que não é o seu, na segunda vez que vi o filme, depois de anos. Cesar vive assim, escondido em plena vista. Para substituir a impossibilidade de encontrar a felicidade ou mesmo de entender o que ela significa, ele se distrai prejudicando todos ao seu redor. A vida se torna um jogo, no qual ele está sempre alguns passos à frente, já que os outros participantes são involuntários e sem noção de que o jogo existe. Cesar detesta todo mundo em uma sociedade guiada por emoções, mas por Clara, uma moradora que insiste em sorrir de verdade apesar dos problemas, ele sente um ódio especial. É como se ele não pudesse abalar a paz da moça e ela se torna um desafio, uma razão para ele viver.

Enquanto Você Dorme é um filme muito interessante de diversas maneiras e a mais evidente delas é que a história é vista através dos olhos de Cesar. Ele narra cada pensamento sórdido em relação aos alvos desatentos e o fato dele ser um homem a princípio não violento, mas com potencial para matar se a ocasião exigir, é que destaca esta produção de outras com o mesmo tema. Cesar passa o dia fingindo não escutar conversas particulares, corrompendo a molecada com subornos e se divertindo com o acesso que tem às chaves de todos os apartamentos. As maldades são discretas o suficiente para que ele não seja pego, mas marcantes a ponto de causar danos terríveis. No final do dia, no entanto, lá está ele de volta ao alto do prédio, como se nem suas piores ações pudessem ser saboreadas por muito tempo. Até que Clara começa a demonstrar sinais de que ele a atinge e a esperança de dias melhores surge na vida do desgraçado.

MIENTRAS DUERMES 2

Não foi a grande cena, aquela que revela a dimensão do estrago que este tipo de gente causa, que me pegou pela autenticidade. Cesar tem uma missão nefasta com Clara e com o resto da humanidade, mas o que o torna um sociopata clássico é um pequeno momento de fraqueza. Até os que teoricamente são pedras em matérias de sentimentos, se esgotam pelo estresse e ele deixa a máscara de sanidade cair na frente de uma moradora, sem nenhuma provocação. Para estudo do fenômeno sociopatia, o filme é perfeito. Para dar calafrios em pobres mortais cheios de amor no coração, o filme é melhor ainda.

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