O Outback australiano é muito mais do que uma badalada cadeia de restaurantes.

Apesar do aviso logo no início, o filme não é exatamente baseado em um caso específico. São na verdade três crimes que se tornaram famosos na Austrália, com múltiplas vítimas fatais e muito sangue frio envolvido. Um deles ficou conhecido como “Os Assassinatos de Snowtown” e esta história tem um filme próprio, mas a atenção do público deve estar focada em outra informação, também divulgada em grandes letras brancas sobre um fundo preto. Com um território gigantesco que cobre a maior parte do país e praticamente inabitado, o Outback, como a região é chamada, é o deserto perfeito para que milhares de pessoas, entre cidadãos e turistas de outros países desapareçam todos os anos. A maioria é encontrada bem, mesmo assim, um número assustador não pode nem ser enterrado, porque não dá pra fazer buscas por corpos em um lugar muito grande que não tem referências, endereço certo ou testemunhas. De vez em quando um corpo aparece e algumas vezes dentro destas estatísticas, esse corpo tem uma história e tanto pra contar.

O filme começa trocando a sempre belíssima paisagem costeira da Austrália, tão emblemática com seus surfistas e praias de águas agitadas, por outra paisagem magnífica no interior do país. Liz, Kristy e Ben estão animadíssimos para conhecer a Cratera de Wolf Creek, um lugar real na Austrália, destino de diversos viajantes atraídos pela beleza do local e do caminho até ele. Teve até festinha de despedida para o trio de amigos, que em nenhum momento se apresenta ou se comporta como personagens típicos de um filme de terror. Não há um figurino escolhido cuidadosamente para expressar a personalidade de ninguém, ou maquiagem retocada a todo o instante e essa simplicidade nada tem a ver com baixo orçamento. Realmente não há a presença prévia de perigo, o que torna o filme ainda mais perturbador. É realidade demais para a nossa pobre suspensão de descrença.

WOLF CREEK 1

Eu entendo que esta ausência de terror e o tempo que isto dura, possam alienar muita gente menos paciente. Porque a verdade é que para quem desiste do filme precocemente, Viagem ao Inferno é um road movie sem grandes eventos, apesar do elenco carismático, dos cenários de tirar o fôlego e do roteiro descompromissado mas divertido. Eu me lembro da minha pressa em querer saber o que estava para acontecer, quando vi o filme pela primeira vez, mas ainda assim, reconheço que a ansiedade presente na espera era semelhante à qualquer filme de terror e não foi necessariamente manchada pela frustração cada vez que nada de importante acontecia. Vendo o filme novamente, eu me lembrei diversas vezes de Elefante de Gus Van Sant (2003), sobre os assassinatos em massa em Columbine. Sabendo que o filme era uma livre reconstituição da tragédia, eu assisti cada curva que os alunos faziam nos corredores da escola segurando a respiração, com a expectativa dos dois adolescentes armados aparecerem a qualquer momento. Sabendo o que vai acontecer em Viagem ao Inferno e ser obrigado a criar laços com as futuras vítimas, é uma forma bem eficiente de tortura que colocaria O Albergue no chinelo.

Na realidade, Wolf Creek é uma atração turística bem preservada mas não supervisionada. Uma cratera grande mas rasa, provocada pela queda de um meteoro sabe Deus há quanto tempo, cercada de nada por todos os lados. Se aproximando do local, nota-se que a população vai ficando cada vez mais escassa, mas o que sobra de gente não é muito diferente do que eles encontraram no litoral. O diretor que é australiano e tem opiniões fortes sobre os traços de personalidade nada simpáticos dos seus compatriotas, disfarçados pela propaganda mundo afora da estabilidade econômica e da beleza natural do país, queria que o público entendesse que não é o mato que faz o bicho. O isolamento só facilita a obra dos bichos com intenções macabras.

WOLF CREEK 2

O filme faz um ótimo trabalho em nos deixar por um bom tempo na companhia de três pessoas sem qualidades extraordinárias, mas que são especiais no modo como os nossos amigos na vida real também são, tendo a nossa atenção, respeito e carinho, sem precisar nos entreter constantemente com piadas, drama ou demonstrações de inteligência e bravura acima da média. Quando eles chegam em Wolf Creek, dá até vontade de parar o filme e ver outra coisa, sabendo que daquele lugar maravilhoso eles podem não retornar. O carro pifa, os relógios de pulso pifam, a noite chega e com ela o ultra-caipira no estilo crocodilo Dundee, entendedor de carros, viagens longas e do Outback, Mick Taylor, para ajudar e resgatar os jovens em apuros. Ah sim, além de ser uma figura super divertida ele também é um serial killer.

Com tanta proximidade da veracidade, Viagem ao Inferno é completamente imprevisível. O próprio vilão do filme explica que em um minúsculo pedaço dentro do Outback, era necessário viajar seis dias de carro para atravessar o território de apenas uma fazenda, o que reforça a ideia do quanto os Mick Taylors da realidade infelizmente podem reinar por toda uma vida sem serem pegos. O filme termina de forma amarga. Não espere recompensa por atos heróicos, mesmo que esta seja simbólica. Também não espere retribuição pelo mal feito. Inteligência e cabeça fria não são páreos para o planejamento de uma mente doentia. De extremamente sossegado a constantemente tenso, esta é uma obra prima pouco apreciada do terror, capaz de assustar uma geração inteira de mochileiros a optar pelas rotas do turismo da terceira idade, onde os guias são fofos e os passeios são seguros.

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