Uma brincadeira entre marido e esposa se transforma em uma luta por sobrevivência.
Mike Flanagan é um diretor em ascensão que tem feito alguns dos melhores filmes de terror da atualidade. É dele a única versão que vale a pena ser conferida, das incontáveis histórias tendo o jogo de tabuleiro Ouija como tema. Criativo com a arte do menos é mais, ele aproveita poucos takes com o suficiente de informações visuais para que a gente entenda que o casal está para viajar. Com uma simples arrumação de malas, ele nos conta o que cada metade da laranja espera que aconteça no passeio. Fica evidente que não estamos para ver uma versão sanguinolenta de 50 Tons de Cinza, quando o diálogo no carro durante o percurso revela um vácuo entre marido e esposa. Não se trata de um casal cinematográfico e eu juro que a pílula azul que Gerald ingeriu, assim que chegou na casa de campo no meio do nada, não o torna um alvo de críticas de quem esperava algo mais orgânico; a má impressão vem do desconforto que a presença dele causa, da mulher com que ele se casou ao cachorro recém-encontrado na rua.
Com uma rapidez indelicada, Jessie se vê presa à cama com algemas que o marido juram ser verdadeiras. Ele não queria usar aquelas “coisas falsas customizadas de sex shop, que podem quebrar facilmente”. Que graça teria, certo? Gerald está mais alvoroçado do que o de costume e Jessie se sente ridícula. Não, é pior porque pra ela não é cômico, é desagradável e ela não está a fim de esperar a empolgação do marido acabar para se livrar daquilo, se é que você me entende. Eles brigam. Ele tenta uma abordagem diferente. Ela recusa. Ele tem um ataque cardíaco e morre, deixando Jessie presa e sem conseguir pedir ajuda. Ele estava tão animado que tinha até esquecido de fechar a porta, o que é bom para que o cachorro entre e faça companhia para ela, mas ruim quando o corpo de Gerald atiça os instintos caninos.
Eu já falei isso aqui: livros e filmes são meios completamente diferentes. O que funciona saindo fresquinho da mente do autor pode ser um verdadeiro desastre nas telas. A gente sabe que Stephen King é um mestre em provocar medo, mas nem todos os diretores sabem filmar King. Alguém mais aqui viu Langoliers? Conhecido no Brasil como Fenda no Tempo, a minissérie baseada em um conto de King tem uma história muito interessante, sobre um grupo de pessoas que foram deixadas para trás no passado, enquanto o resto do mundo segue em frente. Geralmente, quanto mais fiel é uma adaptação, melhor, mas naquele caso, não havia orçamento ou tecnologia para um certo aspecto considerado crucial no livro, então ao invés de alterar o necessário, o diretor optou por inserir efeitos especiais que até hoje me lembram almôndegas gigantes com dentes devorando o tempo que fica para trás.
Eu estou dizendo isso porque Flanagan usa uma narração típica de King no final do filme que poderia tranquilamente ter sido dispensada, mas essa retribuição semi-obrigatória é para mim o seu único erro. O filme tem um personagem, que mesmo com as alucinações e memórias invadindo a mente abalada de Jessie, não combina com a interpretação realista que a história tem. Digamos que Jessie é visitada pela morte e há várias décadas atores com feições exóticas, usando lentes de contato extravagantes e cobertos por quilos de maquiagem deixaram de ser assustadores. Funciona no livro, fica ridículo no filme, a não ser por um detalhe brilhante: o discurso de Gerald! Na verdade, é a cabeça de Jessie, sozinha, apavorada e desidratada demais para fazer a imaginação parar de correr solta. Ela começa a imaginar conversas com o marido morto e na mais perturbadora delas, “Gerald” especula que a morte possa ser uma entidade visível, que nunca perde a oportunidade de aparecer quando alguém está para morrer sozinho. É o pior tipo de pensamento em uma situação já bem sofrível, mas a eficácia que aquelas palavras têm para nos fazer repudiar uma possível aparição da criatura, é realmente incrível. De repente aquele ser potencialmente cafona, se transforma em um personagem verdadeiramente temido.
Alucinações, dores, fome, sede, um cachorro faminto e Jessie perdendo tempo porque é mestre em fugir de qualquer situação difícil, mesmo que seja somente na sua mente. Depois de muitas horas naquela cova simbólica esperando para morrer, ela começa a questionar as decisões de vida que fizeram dela uma pessoa tão sem iniciativa. Flanagan nos tira do quarto algumas vezes, pelas lembranças de Jessie, mas sem que isso seja um grande alívio, porque não se trata de uma história sem eventos entre aquelas quatro paredes. Porém é bom destacar que em uma dessas memórias muito bem filmadas, outro discurso na cama, igualmente apavorante, pode ser a chave que explica porque sentir as mãos atadas não é uma novidade para Jessie. Bruce Greenwood e Carla Gugino, que são atores que eu conheço pelos nomes, mesmo que sejam eternos coadjuvantes no cinema, estão esplêndidos como marido e mulher no filme. Também é muito bom ver que nas mãos certas, Stephen King tem material para nos manter roendo as unhas por anos a fio.