
Agnes e Peter acabaram de se envolver, mas podem sem querer ter iniciado a praga do século.
O trauma de Agnes não é apenas a pior coisa que poderia acontecer com uma mãe, é um pesadelo sempre presente. Quando ela revela que perdeu o filho, pode-se imaginar algo definitivo como a morte, mas o que ela quer dizer é que ela o perdeu de verdade. Em uma dessas compras rotineiras no mercado, a mãe se distrai por alguns segundos e o pequeno Loyd de seis anos desaparece sem deixar pistas. Dez anos depois, Agnes vive bebendo, confinada em um quarto de motel e recebendo telefonemas misteriosos. Para piorar, o ex-marido, ex-presidiário, continua tão violento como sempre e volta para casa para aumentar o tormento. Quando Peter entra no cenário, após ser apresentado pela melhor (e única) amiga, Agnes sente que a vida começa a dar sinais de melhora.
Se logo após assistir ao filme, você fechar os olhos e tentar sem sucesso recordar detalhes da principal locação, não se preocupe, mesmo que nela se passe mais de 90% da ação. Possuídos é um filme tão tenso que nossa atenção se concentra apenas no que o diretor quer, no caso, somente nos personagens e no desenrolar da situação desesperadora na qual eles se encontram. É uma daquelas histórias que nos deixam mal por algum tempo, pensativos e perturbados com o quanto somos todos sensíveis e propensos a transformar uma situação ruim em algo ainda pior. Não dá pra tirar os olhos daquelas pessoas desesperadas e evitar cair no desespero junto com elas. Sofremos junto, suamos junto e se bobear, terminamos o filme arranhando coceiras imaginárias.
William Friedkin é mais famoso por aquela dádiva ao terror que é O Exorcista, mas tirando um ou outro exemplo sobrenatural, ele é um diretor interessado na realidade. O compromisso com a verdade começou logo no início da carreira, com o documentário O Povo vs Paul Crump, que de tão bem sucedido, livrou um homem inocente da cadeira elétrica. Eu tinha lido uma teoria sobre O Exorcista há algum tempo, que contestava a própria possessão demoníaca, dizendo que o filme nem terror era. Que a inabilidade das pessoas ao redor de Regan em lidar com a puberdade da menina, a transformavam em um monstro. É uma linha de pensamento que eu estou resumindo bastante, mas que faz sentido na íntegra, ainda mais quando olhamos o conjunto da obra de Friedkin e, excluindo a tese demoníaca, percebemos que Regan se torna a estátua encontrada pelo padre Merrin, a mãe negligenciada pelo padre Karras e qualquer outra coisa dependendo de quem olha para ela no momento. Eu digo tudo isso porque, independente do título do filme, do tema e do gênero ao qual ele pertence primariamente, existe a forte possibilidade de Possuídos ser um filme bem pé-no-chão, sobre gente que não consegue parar de flutuar.
Peter é tímido, discreto, bem educado e articulado. Acabou de chegar na cidade como se fosse uma aparição e não conhece ninguém. Nada se sabe sobre ele, mas é óbvio desde o princípio que é um indivíduo sem maldade. De uma maneira respeitosa e sem muita fanfarra, ele se aproxima de Agnes. Sozinhos no mundo, os dois se apaixonam rapidamente e Peter se converte na esperança de uma nova vida para Agnes, longe dos maus tratos do ex-marido e se tudo der certo, com um novo endereço e número de telefone, para que as ligações estressantes e silenciosas que ela recebe repetidas vezes por dia, não possam alcançá-la. Depois de apenas algumas horas de convivência, Peter nota algo em sua pele que não está visível ao olho nú. Como o forasteiro é um cara honesto, ainda mais quando comparado ao ex, Agnes é informada sobre a anomalia imediatamente e a partir daí, o sonho se transforma em um dos pesadelos mais difíceis que eu já consegui acompanhar no cinema.
A escolha do elenco não poderia ter sido mais perfeita. A sumida Ashley Judd já havia provado talento para retratar personagens complexos em filmes como Beijos Que Matam. Tudo o que a atriz precisava para brilhar era um roteiro multidimensional e este é possivelmente o melhor trabalho de sua carreira até agora. Michael Shannon é a personificação da neurose, em um papel que o lançou para o estrelato após anos decorando cena em diversos filmes. Outro acerto indispensável para o bom funcionamento do filme, foi o cuidado com a edição de som e não são todos os diretores que fazem do som algo tão ou mais importante do que os aspectos visuais do filme. Como grande parte da história se passa dentro do quarto do motel, é indispensável um elemento que nos direcione para outros lugares, que nos lembre do menino que ninguém sabe onde está, ou nos faça imaginar como foram os dias em que Peter foi um soldado incomum no exército. Quando não é um efeito sonoro, é uma confissão e quando não é um inseto voando é uma gritaria nervosa que não nos deixa ter um minuto de paz no filme. É Willian Friedkin provando que o que Peter traz na pele é extremamente contagioso.