
Uma família de férias é atormentada e torturada… por nós.
Há algum tempo eu vi o remake americano de Violência Gratuita, sem saber que existia esta versão original austríaca, feita dez anos antes pelo mesmo diretor, com os mesmos diálogos, mesmas cenas, mas atores diferentes. Haneke é um dos meus diretores favoritos, porque além de serem muito interessantes, os seus filmes são cuidadosamente planejados para precisarem ser assistidos mais de uma vez. Apesar de manter total controle sobre a sua obra, Michael Haneke incita a participação do público, criando motivações complexas em seus personagens, disfarçadas de impulsos banais, sabendo que não podemos aceitar a simplicidade aparente, quando o resultado das ações é tão catastrófico e duradouro.
Em Violência Gratuita, a participação da audiência é obrigatória. Podemos largar o filme a qualquer momento e fazer outra coisa, porque o diretor nos informa que se continuarmos assistindo, a situação só irá piorar para as vítimas. Ele nos dá até tempo para decidir o destino dos personagens. Uma das cenas, pós-climax e próxima o suficiente do fim do filme para ser considerada um encerramento da história, não tem quase nenhuma ação e a câmera fica parada por quase dez minutos. Interagir com o filme não é um convite, é uma imposição e isso fica evidente quando um dos vilões faz uma coisa terrível. No meio de um jogo cruel que humilha a mãe de família, ele olha para a câmera, sorri e pisca pra gente. Estamos lá com eles, querendo ou não.
Georg e Anna chegam com o filho e o cachorro em uma casa próxima ao lago, como sempre fazem nas férias, assim como os seus vizinhos e todos se conhecem, mas nada disso será útil aqui. A casa mais próxima está recebendo a visita de dois jovens e deve ser por isso que os vizinhos mal cumprimentam Georg e a família, quando eles passam pelo portão.
Começa com um mal-entendido, uma bobagem mesmo, mas não pense por um minuto que era evitável. Os “visitantes do vizinhos”, que de vez em quando se chamam Paul e Peter, aparecem na casa de Georg e Anna. Alguns ovos são derrubados, algumas pessoas se exaltam e Georg dispara o primeiro tapa, sem saber que um dos seus já está morto. Os intrusos garantem que a família não passará das nove da manhã do dia seguinte.
Quem são Peter e Paul? Seriam irmãos, ou melhores amigos? O que querem e como chegaram na vizinhança? Até Georg entende que não faz a menor diferença. É uma questão de providência. Eles são uma dupla, porque uma família de três é melhor controlada por dois do que por um e eles só estão lá porque têm uma missão a cumprir. Não existe emoção, nem descontrole. Até as punições por mau comportamento, são executadas mecanicamente. O tempo inteiro eles nos lembram, que estão apenas desempenhando o papel que se espera deles. Os dois sabem que são personagens em um filme, com o privilégio de “refazer” uma cena, quando algo dá errado para eles. Seria um filme divertido, se os outros personagens não estivessem tão comprometidos com a realidade.
Nenhum dos lados pertence a um filme de terror. Paul e Peter, por não serem reais, têm todas as suas ações perdoadas. A família, por ser tão autêntica, não consegue ser violenta, nem pra se salvar, porque violência não se encaixa no perfil de pessoas normais.
Dando todo o poder a dois homens que sabem que não são reais, sobre outros personagens que não tem a mínima idéia de que estão sendo assistidos, o filme gera um conflito de sentimentos que não nos afastará do terror para sempre, mas pelo menos, nos fará refletir. Não é nem a metade do filme e Georg pergunta se o que sua família sofreu até então, já não é o suficiente. Eu acho que é, mas não aceitaria que o filme terminasse alí. O diretor nos prova, diversas vezes por todo o filme, que não está fornecendo nada além do que queremos ver. Ouvimos o tiro, ouvimos os gritos, mas a câmera está fixa na cozinha, enquanto Paul prepara um sanduíche. Não podemos esperar para saber o que aconteceu, em parte por preocupação, em parte por curiosidade.