
Um garoto fica obcecado pelo carro recém-comprado. O carro retribui a afeição.
Em uma daquelas linhas de montagem de carros dos anos cinquenta e ao som de um clássico do rock bem sugestivo, nasce Christine. Logo na infância, ela já mostra ter aversão a toques sem permissão e pune qualquer desrespeito pela sua lataria. Com poucos minutos de existência, um trabalhador da fábrica é ferido e outro é morto. Não é o Herbie, mas é um carrinho endiabrado.
Christine é baseado em um livro de Stephen King e realmente faz transparecer alguns hábitos do autor, como separar algumas sequências por datas e super desenvolver histórias paralelas. Coisas que ocupam páginas, como um amigo ferido em um campo de futebol, a lenta recuperação e diversas visitas ao hospital, jamais apareceriam em um roteiro feito diretamente para o filme, especialmente quando estes eventos não mudam o curso da história. O filme foi feito em uma época em que King já era uma estrela, por conta de outras adaptações de suas obras. Ninguém, além de Kubrick, ousaria mudar muita coisa, mesmo para beneficiar a transição da escrita para uma linguagem completamente diferente.
Avançando alguns anos no tempo, encontramos o adolescente Arnie, um nerd que para a minha surpresa, não está preso em um cenário cheio de clichés típicos de filmes sobre adolescentes nos anos 80. Para começar, a simpatia que sentimos por ele no início, não dura nem até metade do filme. Estudioso e magricelo, ele nem é tão pentelhado pelos colegas de classe, quanto potencialmente poderia ser. O melhor amigo e fiel escudeiro de Arnie, é Dennis, o astro do time de futebol da escola. Ainda mais incomum, é Dennis ser o mais sensato da dupla, alertando o amigo sobre o péssimo negócio que é comprar um carro velho, caindo aos pedaços, de um sujeito desonesto, por um preço absurdo.
Eu entendo a paixão que algumas pessoas sentem pelos seus veículos. Um carro é sinônimo de liberdade. Não cansa tanto quanto uma bicicleta e é mais acessível do que um avião, por exemplo. Razão não importa para Arnie, que já está encantado com a lata velha. Para o azar dele e de todos ao redor, uma idéia original mostra a paixão sendo correspondida. Sem nenhuma ajuda, Arnie começa a restaurar Christine, que já estava bem surrada pelos anos. Sem experiência e em um tempo surreal, o garoto deixa o carro tão belo quanto era na época da sua concepção. Algo me diz que Christine nunca precisou das mãos nada hábeis do jovem para ser consertada, ela só precisava do amor dele e vai fazer de tudo para mantê-lo, inclusive tentar se livrar de outra bela garota que entra na vida dele.
Enquanto o dono do carro se afasta de todos, nós tomamos o lado de qualquer outra pessoa nas discussões de Arnie. O garoto se torna um idiota arrogante e ele sabe que todos estão certos, quando dizem que aquilo não é um simples carro. Principalmente quando ele precisa “acalmar” o veículo para conseguir dar a partida. Com o passar do tempo, a presença de Arnie no filme é tão estressante, que não existe nenhum remorso quando a história troca de personagem principal.
Não há muito espaço para surpresas. Christine mata todo mundo? Todo mundo menos Arnie? Arnie, menos todo mundo? O resultado não é o mais interessante e sim, ver as diferentes e criativas maneiras de se matar alguém com um carro. Carpenter também era uma estrela e merecidamente, completamente capaz de criar suspense e nos fazer realmente temer um carro. Eu não me lembro de ter levado nenhum susto desnecessário, daqueles que nos fazem pular na cadeira gratuitamente, porque o diretor decidiu fazer de Christine um vilão pensante e misterioso, que demora para atacar, nos fazendo adivinhar se a vítima irá ou não conseguir escapar.
Eu acredito que a razão pela qual o filme nem se importa em explicar a suposta origem para o mal em Christine, seja estarmos assistindo a uma história sobrenatural mas ao mesmo tempo tão comum, quanto uma história de amor doentio. É uma relação abusiva, com Christine no papel do marido ciumento e encrenqueiro e Arnie sendo a esposa que briga com todo mundo por um amor bandido, que não só perdoa, como encoraja assassinatos.