David Prior é o diretor do melhor episódio da série O Gabinete de Curiosidades de Guillermo Del Toro (A Autópsia) e só, já que a vida profissional dele foi construída com making offs. Este é o único longa do diretor e não é um filme de fácil digestão. Eu tenho certeza, no entanto, de que a ousadia e o capricho no trabalho de Prior, almejavam elevar a produção a um patamar, se não mais elevado, pelo menos alternativo aos reservados para terrores mais simples. Para mim, a dedicação do diretor teve frutos. Durante a “grande paralisação do blog”, este foi um dos que quase me fizeram retornar antes do tempo, antes de estar descansada. Mal sabia eu na época, que no mínimo outra sessão seria absolutamente indispensável, como reconheço agora que a cada assistida no futuro, as impressões sobre o filme serão renovadas e terão outro sentido, como se esta fosse, na minha interpretação atual, uma mini-versão moderna de O Iluminado, com seu terror sorrateiro e permanente. 

Não é a primeira vez que acontece, tanto é que Hitchcock havia feito algo similar, mudando de protagonista no meio do filme, mas não diminui o quanto é especial o que acontece na primeira parte deste filme. Estamos em uma montanha no Butão nos anos 90, seguindo quatro alpinistas americanos, enquanto eles nos fazem acreditar que a história deles é a única do filme, quando não é nem mesmo a principal. Depois de um acidente, eles encontram o esqueleto de uma criatura que, se foi humana, deve ter sido uma figura bem interessante. Perfeitamente preservado e em uma posição que indica que aquele ser foi venerado, como uma divindade de um tempo remoto, a descoberta é fascinante e assustadora, com o potencial para mudar como entendemos a história da nossa civilização, mas não haverá tempo para estudos acadêmicos. Dedicar somente um parágrafo vago para este curta parece injusto, de tão bem feito que ele é, sem nenhuma indicação de que a história está prestes a ser interrompida, já que não há pressa e os personagens fazem tudo direitinho, como adultos responsáveis, atletas perdidos em uma história de terror, demonstrando que caberia esperanças por uma luta longa por sobrevivência, mas não, estamos assistindo apenas ao prólogo. O que eu estou querendo reforçar é o meu apreço por uma porção da história, que funcionaria tranquilamente como um longa à parte, só que a verdade é que isto o tornaria apenas um bom filme típico do gênero e não O Mensageiro do Último Dia.

Quando a história começa para valer, em 2018 no Missouri, conhecemos James Lasombra, um jovem ex-policial (sempre um mal sinal), vivendo uma rotina correta e solitária, do jeito que ele gosta. Existe um elemento de preservação e um ainda mais forte de auto-punição em James, que faz com que ele se cuide com juízo, mas nada de atividades focadas em entretenimento. A única que ainda consegue se aproximar dele, é uma antiga vizinha, mas isso é por um sentimento de dívida que ele sente pela jovem. Amanda aparece um dia sem aviso com um papo estranho, desses que você escutaria de gente se preparando para se juntar a um culto. No dia seguinte ela desaparece, levando as roupas e deixando um recado escrito com sangue no espelho do banheiro: “o mensageiro do último dia me obrigou”. Legalmente, ela já é adulta, então a polícia está curiosa, mas não muito preocupada, o que irá forçar James a retornar informalmente à ativa, já que ele é o único com a experiência e o interesse para encontrá-la. Ele será forçado também a lidar com a mãe de Amanda, alguém que ele não gostaria de ver nunca mais. 

O Mensageiro é, ao menos por um tempo, um sobrenatural tão ambíguo que até o público se pergunta se viu o que viu, ou só imaginou algo estranho, antes do corte da cena dar a chance de esclarecer esta dúvida. Isto também vale para o que se escuta. Desconfie até de efeitos inseridos na trilha sonora, para não correr o risco de perder informações valiosas. Não se trata de indução de medo por inserções de imagens, porque desde o início fica claro que as cenas mais perturbadoras, são causadas por gente comum e sem antecedentes de comportamentos irracionais: meditações coletivas em lugares inapropriados, sacrifícios de animais e suicídios múltiplos. A cidade onde todos moram, está aos poucos sendo tomada por ações estranhas de pessoas conhecidas, que provocam incômodo, mas nada alarmante a ponto de exigir uma reação firme, até que seja tarde ou perigoso demais. Em uma cena, um policial veterano conversando com James, confessa que descobrir a causa de um crime, muitas vezes não faz diferença nenhuma, já que a informação não previne crimes semelhantes. Não há a quem recorrer sobre os eventos, não apenas por serem imprevisíveis, mas porque não há certeza do que está acontecendo e aos poucos o público é sugado para dentro deste terreno sem chão. A história nos fornece uma espécie de padrão de contaminação, ou uma sequência pré-estabelecida de passos, que teoricamente estão sendo realizados pelos amaldiçoados, mas não podemos contar com regras no filme. Não será uma ou duas vezes que você “voltará a fita”, para ver novamente uma cena que funciona como um Easter Egg, feita para chamar a atenção só de quem assiste, enquanto quem investiga está distraído com outra coisa. 

Muitos movimentos de câmera notáveis e cinematografia eficiente, mas os trunfos técnicos são o de menos, em uma narrativa que te prende de tal maneira, que só percebemos o estrago no inconsciente, quando algo banal acontece, como um brinquedo se mexendo bem pouquinho e o arrepio é incontrolável. O filme também possui um ótimo trabalho de edição, que perpetua esta atmosfera de insegurança, repetindo para nós o que pode não ter sido absorvido imediatamente e ao mesmo tempo, nos fazendo esquecer o que conseguiu chamar nossa atenção e deveria ter sido gravado na memória como algo importante. A reprise de eventos, também serve para preparar o público sobre o desfecho do filme, que pode ser ou não positivo (um final feliz), dependendo de que ponto de vista ele é percebido. Durante uma sequência quase sem destaque, vemos os moradores caminhando com velas nas mãos tarde da noite, em vigília pelos corpos que não param de surgir pela cidade. Teoricamente não está tão distante de outro ritual de cunho religioso mostrado mais adiante no filme, também envolvendo fogo e moradores locais, mas somente um pode ser considerado normal, simplesmente por pertencer a uma cultura familiar. Esta segunda cena, já que estamos falando dela, é tão desconcertante e impressionante, que poderia ter se tornado um ícone do terror, caso o filme tivesse feito um pouco mais de sucesso, ao invés de cair aos poucos no esquecimento, como está acontecendo. 

A praga é transmitida por um desafio, um sussurro entre amigos e de repente, a vida solitária de James parece bastante atraente, só que esta é outra norma imprecisa. Há pouco controle pessoal nesta história, sobre o envolvimento de muita gente em atividades perigosas. Me parece apenas que os escolhidos da entidade, pela devoção e lealdade, permanecem intactos no filme e é por isso que a dúvida sobre o destino de Amanda, cujo corpo não aparece com outros jovens mortos, é legítima. A investigação de James toma conta de boa parte do filme e é muito bem conduzida, apesar das interferências incomuns. O resultado dela, no entanto, é algo que pode ter influenciado a recepção do filme por grande parte do público. Temos principalmente no cinema de terror, este desejo super coerente por salvação, ou pela busca dela, mas estamos torcendo por gente que pode estar mais feliz com um monstro do que sem ele e isto é, eu entendo, difícil de aceitar. Outro personagem, um palestrante ou professor, ganha como o velho policial da outra cena, uma chance de fazer mais um discurso raro, no qual ele explica o vilão filosoficamente, mas a constatação de que motivos e razões, continuam não fazendo diferença com tantas mortes, permanece. Enquanto uns temem o vazio que o filme deixa, outros dentro do filme celebram o vazio, pelas possibilidades que surgem dele.