De tempos em tempos, a indústria lança uma representação do mal absoluto, manifestada na forma de um sujeito comum. Geralmente não são filmes de terror oficialmente, como este aqui também não é, apesar de que o responsável pela escolha do nome em português, sabia do que se tratava este “filme noir”. De alguns exemplos, eu me lembro da perseverança malígna de Max Cady, na versão do Scorcese de Cabo do Medo (1991), buscando vingança após passar anos na prisão, contra seu antigo defensor público por… não se empenhar tanto no caso quanto poderia, mesmo que Max fosse claramente culpado. Eu também nunca vou me esquecer de tudo o que a jovem Liz teve que suportar em Amaldiçoada (Brimstone – 2016), para escapar de um reverendo que não a deixa viver em paz, sob uma desculpa ainda mais surreal. Não é somente a necessidade de domínio total sobre o próximo, ou a persistência com um alvo específico que faz destes homens de carne e osso, verdadeiras materializações do inferno. Assim como o personagem de Robert Mitchum, que é a presença ameaçadora deste filme, os vilões mencionados acima possuem uma sorte sobrenatural, burlando a lei sem muito esforço, conseguindo sempre as informações certas sobre suas presas e tendo uma disposição incansável para atormentar quem quiserem, como se não parassem nem para comer.
Este é o pesadelo de qualquer filho de pai ou mãe solo, quando o novo companheiro que o genitor arranjou, não passa de uma casca artificial, polida para enganar trouxas. Piora quando a história é da época em que a inocência era uma virtude preservada até a velhice. Se a aparência do indivíduo é agradável e a fala é mansa, fica difícil para o responsável pela criança resistir, já que a pressão externa e interna é imensa. No caso de Willa, mãe de John e Pearl, arranjar um marido é uma urgência. Viúva desde que o marido assaltante e assassino foi condenado à forca, ela sente que tem uma dívida com a sociedade. Persuadida pelos amigos e pela própria vergonha, Willa se casa com Harry Powell, um homem que chega no vilarejo dizendo ser pastor. De acordo com Harry, ele foi o conselheiro do marido de Willa na prisão e queria saber como a família do morto estava se virando, porque é um verdadeiro servo de Deus que não julga ninguém! A esperança de bom senso, fica com o menino John, que ao contrário dos outros moradores da vila, enxerga de cara um ator, sacando o real motivo para a chegada de Harry. O dinheiro do assalto nunca foi recuperado pela polícia, porque o falecido o escondeu em algum lugar da casa e só revelou para as crianças. Harry sabe o segredo de John e Pearl, mas John também sabe o segredo de Harry. O problema é que a palavra de um adulto, é muito mais forte que a de qualquer criança, mesmo que este adulto seja recente e a criança seja nativa na comunidade.

Perdoe, Senhor, as cenas aéreas feitas muito antes do surgimento de drones, ou qualquer mecanismo decente de contrapeso que estabilizasse as imagens. Perdoe também as atuações amadoras das crianças. Esta é uma história universal e atemporal, portanto eu fico feliz dela ter sido contada quando o questionamento de figuras de autoridade não era encorajado, mesmo que os recursos da produção fiquem a desejar de vez em quando. Harry Powell é uma figura tão pervertida, que nem se acanha de dividir com um Deus, com o qual ele conversa o tempo inteiro, a responsabilidade pelo próprio estilo de vida. Um servo auto-ordenado do altíssimo, violento e sem remorso, ele se sustenta seduzindo viúvas e tirando delas o pouco que as mulheres têm, antes de matá-las. O rastro de corpos deixados para trás irá aumentar, assim que ele descobrir onde estão os dez mil dólares escondidos, uma quantia capaz de mudar a vida de muita gente, principalmente durante a Grande Depressão, mas para combater este capeta existem dois anjos no filme, que fizeram uma promessa muito importante. Não vai ser tão fácil quanto roubar doce, Harry!
Este é o único filme dirigido pelo ator Charles Laughton, ativo em Hollywood desde os anos 20. Para um marinheiro de primeira viagem, ele não fez feio e ainda passeou com segurança por mais gêneros do que eu esperava. Tem tanta cantoria no filme que ele virou um terror-musical para mim. Eu gostaria de destacar brevemente que Mitchum tem uma belíssima voz. O modo como ela é usada no filme, é uma aula de maestria em terror. Com uma antiga cantiga de igreja, Leaning on Everlasting Arms (a versão gringa de Segura na Mão de Deus), Harry anuncia a própria aproximação, como se nada temesse, provocando uma sensação pavorosa de pânico nas crianças e em nós também. O filme poderia passar por um processo de restauração, apesar de que eu não estou certa de que temos recursos suficientemente modernos, para remover com segurança tanta granulação de uma obra que deveria ter sido melhor preservada.

A fotografia do veterano Stanley Cortez também merece ser comentada. É com seu uso memorável e eficiente de luz e sombra, neste velho preto e branco, que a presença de Mitchum fica consolidada como monstruosa, como se ele se elevasse aos clássicos como Frankenstein e Drácula. Com a excessão de poucos momentos de pieguice e religiosidade, que eu creio serem obrigatórias para amenizar o tópico para o público da era de ouro, os diálogos são impecáveis. As palavras da vizinha bisbilhoteira, são sempre verdades absolutas na cabeça dela e absurdas para quem assiste. O tio do barco é tão heróico com as afirmações, quanto inútil com as ações. Tudo o que sai da boca de Harry é plausível. Se ele não está com as mãos sujas de sangue, convence qualquer um de qualquer coisa. Tudo o que Willa diz é digno de pena. Na pele da sempre adorável Shelley Winters, ela rebate qualquer crítica, qualquer julgamento em sua direção, com votos de redenção. Como a mulher do condenado, ela é desde as primeiras cenas, uma grande vítima das decisões e atitudes dos mais fortes ao redor. Seu conformismo é a única saída e seu destino é inevitável. Não temos nem o conforto de sentir raiva dela, quando a dupla infantil se vê sem proteção.
Quando fica claro que não há nenhum adulto que os salvará, John e Pearl deixam a cidade de barco pelo rio, em uma das mais belas, longas e angustiantes sequências de fuga que você verá na vida. Eu tenho uma confissão a fazer em relação a este filme. Eu o vi pela primeira vez entre dez e quinze anos atrás, mas quando eu era criança, tive o que eu considero… “meu único pesadelo cuja lembrança é total, do início ao fim”. Eu não tenho explicação, porque teria reconhecido a cena se a tivesse visto antes, mas o tema central do meu sonho, era exatamente esta sequência de fuga. Nele, eu vivia em um vilarejo onde todas as crianças eram cuidadas por todos os adultos. Tudo era pacífico até a chegada de um estranho que para mim, somente para mim, era um lobo em pele de cordeiro. Sem entrar em muitos detalhes e eu tenho diversos detalhes deste sonho, é importante apenas dizer que o homem com ares de executivo e olhos completamente mortos, conseguiu encantar em pouco tempo, toda a comunidade na qual eu vivia e não havia nada a ser feito. Por um milagre, eu consegui convencer outra criança a fugir comigo… de barco pelo rio, por um caminho tão longo que quando chegamos ao nosso destino, já éramos adultos. Vivemos normalmente por muito tempo, até que um dia, entrando em um elevador de um shopping durante um passeio, lá estava o sujeito. Com um sorriso malicioso no rosto, a mesma aparência jovial e comparsas dos dois lados. Ele nos reconheceu e o sonho que eu ainda sinto como uma experiência macabra em tempo real, acabou. O pequeno John pergunta para si mesmo, quando escuta Harry cantando aquela canção sagrada, quando é óbvio pela fome e pela distância percorrida, que não tem lógica aquele homem estar tão próximo: “Ele não dorme?”. Não, meu querido John, infelizmente o diabo nunca dorme.