
Três jovens são raptadas por um homem com múltiplas personalidades.
Fragmentado é na superfície, sobre um homem que de tão maltratado na infância, só consegue lidar com o mundo real porque a mente se dividiu em mais de vinte personalidades diferentes. Para evitar confusão, eu vou me referir a este homem como McAvoy, o ator que faz um trabalho estupendo dentro de uma premissa tão imaginativa, interpretando diversos personagens entre homens, mulheres e crianças, cada um com seus trejeitos e peculiaridades. Sem deixar de lado a fantasia, Fragmentado também é sobre lidar de maneiras diferentes com traumas e principalmente, sobre o diretor M. Night Shyamalan perceber que o público que curte filmes espera um twist, mas o público que ama cinema espera ver o coração do diretor na tela.
McAvoy passa grande parte do filme dando vida a Dennis, a personalidade maníaca por limpeza e com uma fraqueza por moças jovens. Ele é o responsável por executar sem alarde, o sequestro de três adolescentes em um local público em plena luz do dia. A razão do sequestro é menos maliciosa e mais assustadora do que se imagina. Para o desespero da maioria do povo que habita o mesmo corpo, Dennis e outros dois alter egos querem usar as meninas para alimentar uma identidade que ainda está em formação. Uma que pretende surgir em McAvoy e mudar o mundo através da dor.
Dennis leva as meninas desacordadas para um local subterrâneo cheio de portas e corredores, que apesar de ser isolado fica no meio da cidade. A conveniência de possuir uma espécie de calabouço tão perto da civilização, serve para que as regulares consultas com a terapeuta de McAvoy sejam mantidas, assim como as aparências. Um homem com uma mente tão complexa já chamaria a atenção da comunidade médica em qualquer dia da semana, então, dominando todo o tempo acordado do anfitrião, reprimindo os alter egos mais dóceis e com um crime em andamento, a turma de Dennis não quer levantar suspeitas. Com isso em mente, eu queria dizer que não seria difícil que a história descambasse para a bagunça, ou para a paródia, caso M. Night não limitasse o número de personalidades na tela. É tentador mostrar todas elas, mas felizmente não chegamos a conhecer nem dez entre vinte e três. Menos personagens para o ator e mais tempo para desenvolve-las com competência.
É interessante que M. Night, que sempre gostou de flashbacks, os use menos para explicar a perturbação do vilão e mais para mostrar como tem sido a vida de Casey, uma das garotas sequestradas interpretadas por Anya Taylor-Joy (a atriz novata mais requisitada do momento). O plano era raptar apenas Claire e Marcia, duas amigas de escola que os sequestradores consideram como “possuidoras de vidas livres de sofrimento”. Um imprevisto juntou Casey as outras duas e desde a primeira cena, está claro que ela é uma garota diferente. Os atributos que fazem de Casey uma potencial “final girl”, ou seja, aquela que tem mais chances de sobreviver, por conseguir manter a cabeça no lugar, só funcionam porque o diretor voltou a usar a melhor característica de seus trabalhos anteriores, que é dar sentido de forma coerente aos padrões de comportamento e reações de seus personagens. Do mundano ao absurdo, tudo tem um propósito, nada é inventado ao longo do caminho. Pode não ser tão enigmático quanto espalhar inocentemente copos de água pela casa, para serem usados contra um vilão alérgico no final do filme, mas faz sentido que em Fragmentado uma das meninas se agasalhe melhor do que as outras, que a terapeuta tenha todas as respostas e que o alter ego com a habilidade de tomar o corpo de McAvoy quando quiser, seja o que mais se aproxima dele em espírito.
Enquanto as sequestradas usam recursos previsíveis e menos previsíveis para tentar escapar do neurótico Dennis, da metódica Sra. Patrícia e até do pequeno Hedwig, todos se preparam para a chegada da Fera, a vigésima quarta identidade cujo pé no sobrenatural também possui justificativa. Na escala de auto-confiança de Shyamalan, sendo 1 dar um papel pequeno para si mesmo e 10 sendo substituir um twist tradicional por um teaser para um próximo filme, ao mesmo tempo em que faz uma auto-referência; eu diria que o diretor sabia que tinha um material muito bom nas mãos e uma vontade gigantesca de fazer o filme com amor. Mesmo depois de A Visita eu ainda não botava muita fé, mas acho que posso dizer que o cara realmente está de volta.