
Sem sombra de dúvida, Regan, uma adolescente tão normal que nem parece fictícia, está possuida pelo diabo.
Gostando ou não de filmes de terror, todos conhecem O Exorcista. Sabemos que o filme tem um padre jovem e um mais velho, sabemos a cor do vômito, sabemos sobre a contorção no pescoço e conseguimos descrever de cabeça, a cena que ilustra a capa do filme. Mas a razão para o conhecimento comum vai além das cenas famosas. O filme é tão importante para a história do cinema, que precisa ser assistido por todo mundo, pelo menos uma vez, como E O Vento Levou ou Titanic. Seu conteúdo, verídico ou não, é um serviço de utilidade pública. O ritual que supostamente expulsa demônios de corpos inocentes, era apenas uma parte embaraçosa da história do catolicismo que os fiéis preferiam não mencionar, até que o filme nos revelou todo o processo, com gestos e frases tirados de específicas edições da bíblia. A familiarização com a cerimônia, pode até fazer dela um instrumento de comparação com o mesmo tema em outros filmes de terror, mas mesmo assim, através dos anos, O Exorcista nunca permitiu que o público saísse da condição de amador no assunto. Não sabemos de nada, nem por que o quarto onde tudo acontece fica tão frio. Simplesmente aceitamos.
Quando o filme foi relançado para o grande público há alguns anos, eu me lembro de ter o ingresso na mão, mas de ter desistido da sessão depois de perceber naquela matinê, que eu seria a única na sala de cinema. Era a última sessão antes do filme sair de cartaz, mas a ansiedade me fez perder a oportunidade. Eu me lembro também de na mesma época, conversar com um amigo que viu o filme nos anos setenta e se recusava a vê-lo novamente. O trauma ainda não havia sido superado, ele disse. Isso acontece quando um terror não nos mostra como prevení-lo. Não ficamos sabendo quais lugares ou pessoas devemos evitar, que tipo de comida não ingerir. Não é um demônio qualquer e sim o diabo que Regan diz estar no controle. Não é pretensão, porque o filme é muito mais do que cenas marcantes ou a descrição de um ritual, é um relato do próprio inferno sem concepções abstratas. Enxergamos muito bem a destruição da menina, dos próximos a ela e dos que deveriam estar melhor preparados.
WIlliam Friedkin é um diretor tão ambicioso que estreou na profissão com um documentário, cujos argumentos salvaram um homem inocente da cadeira elétrica em 1962. Uma década depois, com um oscar de melhor filme no currículo por Operação França, ele se propôs a fazer este filme baseado em um livro, sobre uma criança que após apresentar sinais de possessão demoníaca, recebe o aval da Igreja Católica para se submeter a um exorcismo. Terror não era território desconhecido para Friedkin, mas ele tinha preferência por obras mais realistas. Talvez essa seja a explicação para que o diretor não tenha se adaptado ao gênero e sim o contrário, fazendo com que a seriedade com a qual ele trata um assunto tão extravagante, torne possível a substituição do problema “possessão demoníaca” por um outro qualquer, como fazer de Regan uma jovem adulta e lhe atribuir um vício destrutivo em drogas, por exemplo. A mãe ainda estaria desesperada e as pessoas ao redor ainda não teriam certeza do que fazer. É incrível que Friedkin tenha conseguido fazer um filme sem trejeitos de terror, e mantê-lo no topo de qualquer lista de filmes mais assustadores da história.
Três núcleos separados irão se reunir no filme, assim que os médicos desistirem de uma solução científica para o que está acontecendo. Temos o padre Karras, mostrado com muito mais humanidade do que santidade, carregando a cruz de não ter passado mais tempo com a mãe antes dela morrer. Temos o padre Merrin, o religioso mais destemido do mundo, interpretado por Max Von Sidow, que independente da maquiagem, fez um trabalho tão surpreendente para parecer uns quarenta anos mais velho no papel, que sempre me faz estranhar o fato do ator ainda estar vivo, toda vez que ele é escalado para um filme atual. Ligando os dois homens, estão Chris, uma atriz de sucesso que cria sozinha a filha Regan, mais conhecida como a pré-adolescente mais angelical a encher o mundo de pesadelos.
Se você acha ridículo ter medo dos mascarados vagarosos, que tal temer uma criança presa a uma cama? Regan é a vilã inerte mais assustadora que eu já vi. Os personagens são tão desprovidos de pompa, que colocar alguém como ela no meio deles é uma crueldade. Com dor, acompanhamos a progressão da “doença” da menina, esperando que o estágio seguinte seja o último por achar que não dá para piorar, mas sempre piora. Cada vez que a jovem atriz aparece em cena, seus olhos estão com menos vida, seu corpo mais castigado e sua personalidade mais distante do que costumava ser. Mesmo com esse acompanhamento e sabendo se tratar de nada mais que uma criança um pouco crescida, passamos pela mesma transformação de sentimentos que a mãe dela passa. Aos poucos, sem que a gente perceba, deixamos de sentir pena dela e começamos a encarar Regan como um inimigo.
Em 73, o público se perguntou: Por que esta rua? Por que esta casa? Por que esta garotinha? A ausência de respostas só serviu para aumentar o mal-estar e por consequência, nos deixar mais intrigados. Nos dias de hoje, filmes sobre exorcismo são lançados em dúzias, mas não é só o caráter inaugural que mantém O Exorcista muito acima das continuações e dos sucessores. O tópico em questão atrai até os céticos de um modo que nenhum outro ritual religioso consegue, e vamos ser honestos, nenhum cristão assiste a Missa do Galo por diversão. É um assunto apavorante e fascinante, se valorizado por estes aspectos, como Friedkin teve a coragem de fazer, você vai agarrar uma bíblia, crendo nela ou não.