Existem duas introduções visuais no filme, criadas para ilustrar perfeitamente a monstruosidade que estamos prestes a testemunhar e a completa falta de necessidade do ato. Primeiro, como uma explicação do procedimento em questão, vemos um ovo cru sob um balcão, recebendo uma injeção que o fará duplicar a própria gema. Não havia nada de errado com a gema velha, até que observamos a gema nova com cuidado e percebemos o quanto o arredondamento dela é mais simétrico do que o da antiga e ela por consequência, miraculosamente, parece ser mais saudável. A abertura dois do filme, se é que ela pode ser definida assim, exibe a ascensão e a queda do ovo, ou no caso, da atriz que não fará objeções à injeção, aceitando seus piores efeitos até o final, mostrando sob um ângulo genial a estrela da atriz na Calçada da Fama, através de muitos anos, desde a inauguração nos anos 80 até os dias de hoje, quando o público precisa se esforçar para literalmente reconhecer em quem está pisando. 

Elisabeth Sparkle (que nome sugestivo) é uma profissional competente e de muito talento, tanto é que a mais famosa estatueta dourada, das diversas premiações da profissão a qual ela pertence, não é a única na sua coleção. A veterana da atuação também foi muito famosa, ou não teria sido prestigiada com a estrela que supostamente imortaliza este período na vida dela e na história do cinema, apesar de que, até os mais fanáticos por filmes entre nós, não saberia quem é a maior parte dos homenageados daquele passeio em Los Angeles.  Elisabeth também foi uma mulher muito bonita. Ainda é! Só que ela pode ter sido a mais bela do mundo inteiro por alguns anos consecutivos e eu também falo aqui de Demi Moore, que sempre foi belíssima, independente do papel, com qualquer corte de cabelo ou sem cabelo nenhum, mas que diferença isso faz realmente? De uma altura tão elevada, pelo tempo que for, eu acredito que o declínio deva ser bem mais doloroso, mas o tombo de todas as estrelas é inevitável e é esta certeza que faz da busca eterna pelos holofotes a qualquer custo, algo ainda mais perturbador. De que adianta toda a fama e beleza, se no final das contas ninguém liga? Para que usar a substância, que serve como uma alegoria para qualquer e todo o procedimento anti-envelhecimento, que custará caro a longo prazo, para somente prolongar sofrimentos e adiar rejeições? A questão do filme não é sobre o funcionamento da substância, mas sim como funciona a loucura do uso dela. 

Muitos elementos no filme, que possui cenas intensas de cirurgias sem bisturi e experiências científicas tão distantes da nossa realidade, que invadem o território da fantasia; lembram os aspectos mais repugnantes das obras de David Cronenberg, de Scanners (1981), A Mosca (1986) e Naked Lunch (1989). O diretor foi o responsável por glorificar e elevar a qualidade do cinema trash, expondo o grande público às imagens mais nojentas, que ele conseguia produzir sem ser hostilizado, virando certamente uma grande referência aqui para a verdadeira diretora, a francesa Coralie Fargeat, de Revenge (2017), que assume com este filme, a tarefa sempre pertinente no terror, de chocar a galera mais baunilha deste lado da tela. Só que Cronenberg, que expunha ideias amalucadas com imagens desagradáveis, era um criador caótico, mas que deixava suas obras mais abertas e Coralie, que prefere que sua mensagem seja vista de maneira mais clara, apela para imagens ainda mais asquerosas destinadas a interpretações bem definidas, aumentando a nossa repulsa pelo que ela exibe até chegar no grau desejado do final do filme, que o remove do “nu artístico” para a categoria de “pelado sem vergonha”, que é onde se encontram trashs do calibre de Society (1989) e os mais apimentados deste lado da tela entre vocês, vão saber do que se trata esta comparação. Por incrível que pareça, a sutileza embutida no grotesco figurativo de Cronenberg, não pode ser adotada para a mensagem deste filme. 

Ao ser surpreendida com uma demissão nada suave, estando já no que pode ser considerada uma função de fim de carreira, – a la Jane Fonda que mesmo premiadíssima e fazendo parte da realeza de Hollywood, se manteve relevante na indústria do entretenimento, através de uma bem sucedida série de vídeos de exercícios físicos – a estrela esnobada Liz Sparkle só não é tomada pela depressão, por conta do surgimento de uma oportunidade surreal e imoral, fornecida por uma empresa clandestina. Tendo Elisabeth como base biológica, um clone rejuvenescido e melhorado é criado, para devolver à atriz toda a gloria que ela julga merecer e francamente, que ela é incapaz de viver sem! A substância daria a ela uma chance de sucesso novamente, fazendo o caminho inverso na profissão, que é estrear substituindo a si mesma na série fitness de t.v., com outro nome e um novo rosto, fornecido pela incrível Margaret Qualley, para depois deslanchar no cinema… um plano de carreira que certamente aconteceria, com o talento nato, uma beleza inegável e décadas de experiência. Só que o procedimento, ensinado aos pacientes na base do passo a passo numerado e letras gigantes nas palavras limitadas, tem uma cláusula que já seria impossível de ser seguida, mesmo que a clientela não fosse dominada pelo ego. A energia vital entre as duas versões, precisa ser dividida em sete dias para cada, sem que uma extrapole o direito de existir da outra, ou seja, quanto mais a Liz jovem faz sucesso, menos dias a Liz velha tem para utilizar o corpo original, resultando em desastres irreparáveis. A propósito, uma grande salva de palmas para Demi Moore, de G.I. Jane e da capa da Vanity Fair, na qual apareceu grávida todos aqueles anos atrás, se mantendo na vanguarda mesmo sem a fama de outros tempos, totalmente destemida ao concordar em ser vista como a versão menos desejável da uma personagem insegura.

Neste bizarro e imperdível conto hollywoodiano, os cenários se repetem o tempo inteiro, entre o estúdio de televisão, o apartamento, a cafeteria e o depósito secreto da substância, como um loop inescapável para quem toma decisões equivocadas. Em tom de humor e de tragédia, entramos na mente de uma pessoa disposta a abandonar a própria identidade, não apenas quando a identidade se torna decepcionante, mas quando ela é construída em um terreno instável, dependendo dos olhos e opiniões de terceiros. A sequência mais angustiante do filme, acontece quando Liz, marcando um encontro com um amigo de infância, se vê incapaz de sair de casa, após trocar de roupa e retocar a maquiagem diversas vezes, por se sentir indigna de atenção, agora que a outra mulher existe, ainda que o “date” seja completamente encantado com a beleza natural e madura dela. A escolha do filme de manter somente uma energia vital, mas não apenas uma consciência para as duas versões, me deixou intrigada sobre como poderia ter sido mais interessante uma história de conflitos internos, sem o clima de disputa e da pancadaria que acaba se instalando, entre duas mulheres que tentam convencer o público de que são apenas uma. Também, se não fosse todo o desrespeito de “Sue”, que não brilharia sem o caminho pavimentado por Liz ( ou existiria sem os fluídos corporais dela), passando dos limites sem se importar com o bem estar de quem a mantém viva, toda fútil e ridícula, abrindo uma lata de coca-cola, que na idade dela ainda pode ser consumida sem moderação, já que ela não tem o meu esôfago e, na boa, quem ela pensa que é com aquela bunda abusada e magricela, rebolando o tempo inteiro na tela… gente… credo, perdão! Eu entendo, Sra. Sparkle! Não faria o que você fez, mas entendo. Nós, o povo do cromossomo XX, somos um bicho complicado!