Tudo bem se a última vez que falamos de Black Mirror foi naquele especial sobre séries (2000-2010), publicado em 2018 e agora pulamos a quinta temporada completamente? Bom, eu tenho certeza de que falei de Bandersnatch em alguma lista. Você reclama: “Nossa Muito Molho, que inconsistência nas postagens!” e eu te respondo: “Você deve ser novo por aqui…”. Agora que o criador Charlie Brooker está de volta e ele assina o roteiro dos cinco episódios, a antologia parece ter retornado ao seu habitat supernatural. Eu gostei de todas as histórias, com duas delas sendo tão pesados que eu precisei de tempo para retomar os episódios. O texto abaixo contém spoilers. 

EP. 1 – JOAN IS AWFUL

Charlie voltou apontando dedos para a possível causa do abandono temporário do próprio filhote, para a plataforma de streaming onde o filhote está disponível. Aqui, Netflix se chama Streamberry e os termos e condições da assinatura são diabólicos. Por mais absurda que a premissa de Joan Is Awful pareça, ela tem um pé fincado na nossa realidade atual. Todos os dias, surge pelo menos um vídeo viral nas redes sociais com algum anônimo agindo de maneira estúpida. Descartemos os criminosos pegos em câmeras de monitoramento ou algo do tipo, porque estes serão encaminhados à polícia e não recebem nem uma fração da atenção que uma traição conjugal, uma dança inapropriada em um aniversário infantil, ou uma adolescente evoluindo o “nem doeu” para “acabou, Jéssica?” depois de uma briga de escola, recebem de um povo que é convocado a virar público a contragosto e reage à altura nos julgamentos. Ninguém mais escapa de fazer uma besteira, de cometer um erro ou, que seja um comportamento bastante reprovável, mas privado, porque todo celular tem câmera e nós gravamos primeiro, postamos e só curtimos se der. Ninguém liga se a super-exposição foi consentida, porque os termos e condições de uso da tecnologia, só importam se eles nos atingem pessoalmente. 

 

No episódio de abertura da temporada, a tecnologia aparece melhorada é claro, mas trata-se da mais recente possível, com disponibilidade para quem quiser acessá-la: a inteligência artificial para gerar imagens digitais realistas, a partir das descrições que o programa recebe. Até a voz de uma pessoa famosa pode ser assustadoramente replicada agora, dizendo palavras que ela nunca pronunciou. Por isso é tão fácil, como sugere o enredo, que a atriz Salma Hayek nem precise decorar textos ou aparecer no set de Joan Is Awful, para interpretar o que a I.A. interpreta que seja a realidade na vida de Joan, uma mulher normal, flertando com a infidelidade e contratada para ser a testa de ferro de uma empresa, essa sim, verdadeiramente “awful”, ou sinceramente, típica! Virando o alvo do ódio coletivo da vez, a executiva nem cogita a opção de tornar sua rotina tão enfadonha que o público perca o interesse, no que se tornou a série/paródia da vida dela. No fundo, ela está cansada de fazer o que não quer e decide apelar de verdade, tomando as rédeas da narrativa de forma escatológica. Nada de ChatGPT neste episódio, porque ele é Brooker puro. Provocador e relevante, com um twist bem interessante na sala de controle do super computador. Dá até para forçar o proletariado a ficar com pena de gerente. 

EP. 2 – LOCH HENRY

KC and The Sunshine Band no rádio e eu pensaria que estamos nos anos 80, se não fosse pelo look desleixado-chic, porém atual de Pia, a documentarista acompanhando o namorado e também documentarista Davis, igualmente molambento, pela belíssima paisagem escocesa. Esse povo de comunicação trabalhando atrás das câmeras, sempre teve fama de maloqueiro mesmo. Eu ainda me lembro da ginástica verbal da coordenadora do curso de Radio e Televisão, nos chamando de “alternativos” para não perder as amizades, mas passar o recado de que ninguém perde nada cuidando um pouco mais da apresentação. Aparência é de fato, uma questão importante no segundo episódio da temporada, que também marca pela crueldade atípica, até para Black Mirror, com uma violência que não precisamos testemunhar para repudiar. Logo no início, somos introduzidos à outra dupla, pai e filho e induzidos a acreditar que um é gente boa e o outro um bêbado antissocial. No final de Loch Henry, quando todas as máscaras caem, eu me lembro que antissocial, para a psicologia, é alguém que não se importa com os sentimentos alheios e que prioriza as próprias necessidades sob qualquer circunstância… e eu enxergo a ironia. 

O casal chega na cidade quase vazia e descobre que a ideia inicial, de fazer um filme sobre algo que eu nem lembro mais (e é esse o ponto), jamais teria o mesmo potencial de sucesso, de um documentário sobre o serial killer responsável por matar  turistas e o turismo, décadas atrás. As implicações morais são ignoradas, até mesmo quando eles decidem forjar imagens da época, utilizando o equipamento adequado. É quando entra em cena o V.H.S., que não é atual e muito menos futurístico, mas o que os mais jovens telespectadores devem aprender com este episódio, entre outros ensinamentos, é que aquela tecnologia estava em todas as casas, como a internet está hoje, sendo um instrumento muito útil de gravação e regravação de vídeos, se você não violava o lacre (ou cobria o lacre com uma fita… o K7 também funcionava assim com áudio). Se bem cuidada, a mídia poderia durar muito tempo, guardando imagens que você pode ter esquecido que gravou, como é o caso das fitas da mãe de Davis, preservadas pelo valor da bunda do ator preferido, da série preferida dela. Alfinetando novamente o serviço de streaming, pelo conteúdo interminável de séries True Crime, que até mencionam a dor das famílias das vítimas, mas não poupam ninguém dos detalhes abomináveis, o roteirista coloca em destaque também os realizadores deste tipo de conteúdo, que conseguem inventar musiquinha vexatória, após uma passagem de embrulhar o estômago pelo local das mortes. Por último, o foco é o público sedento pelas histórias reais de assassinatos em série. O mérito de finalmente nos colocar na pele da vítima, que não precisa nem mesmo ser completamente inocente, é todo de Brooker, com uma história que também não precisa ser totalmente imprevisível. Eu me lembro de ter virado os olhos, para a revolta de alguns familiares das vítimas de Dahmer, enquanto escrevia sobre a série de 2022 da Netflix para este blog, do conforto da minha distância física, temporal e emocional, em relação ao monstro. Sim, a “maloqueira” aqui também enxerga a insensibilidade particular agora. 

EP. 3 – BEYOND THE SEA

A tecnologia é a mais futurista possível, mas o episódio é retrô. Este é um Além da Imaginação dos infernos, com base na criatividade de uma era mais inocente, mas com resultados catastróficos, que incluem aspectos da natureza humana nunca abordados na telinha antiga. O que deveria passar, mas não passa na nossa cabeça moderna, após anos de exposição à notícias e acontecimentos, que atualizam constantemente nosso entendimento coletivo sobre crueldade, é que uma vez que a tragédia acontece e é muito interessante que Brooker utilize justamente, um massacre que espelha o de Sharon Tate e amigos, sob o domínio dos fanáticos da família Manson, não há mais possibilidade de retorno à normalidade. Quando algo do tipo acontece com um de nós, o horror reverbera em toda a humanidade. No caso dos astronautas enclausurados, demora um tempinho, mas a porrada vem, para que percebamos que se aconteceu com um, aconteceu com ambos, mesmo que não seja de imediato. 

Em Beyond the Sea, Aaron Paul (que está incrível em um papel duplo) e Josh Hartnett, são dois homens muito diferentes, no trabalho e em casa, isolados em uma espaçonave para uma missão governamental super importante, com duração de seis anos. Replicas de seus corpos permanecem na Terra, para receber as consciências dos astronautas em momentos de descanso em órbita, para que tanto os homens como suas famílias, possam viver uma vida de qualidade, dentro de limites. Um dia, o personagem de Hartnett perde tudo, inclusive sua réplica e cabe a Paul dividir a dele, quando aquele incidente brutal deveria ter simbolizado o fim da missão. Um homem muito frio e um homem muito quente, com seus corpos isolados por anos, mas consciências afastadas, pode ter indicado sucesso na teoria. Que diferença faz, quando um deles não está e não ficará bem? Sucesso, só com os dois se tornando iguais novamente. É um episódio bem violento, mesmo que a maior parte da violência não seja mostrada. Um pouco longo, mas eu acho que o alvo era ser plausível, não que houvesse essa necessidade. Precedente real, a gente já tinha.

EP. 4 – MAZEY DAY

O ano é dois mil e internet discada. Suri Cruise ainda é um bebê e se a imprensa especializada em artistas do cinema e da música, quiser um furo de reportagem, terá que acampar em locais frequentados pelas estrelas, porque elas não publicam tudo o que fazem em um Instagram que ainda não foi inventado. No caso deste que é o menos sólido dos episódios desta temporada, sorte também é um fator importante, já que a paparazzi que protagoniza esta história, está sempre obtendo informações que chegam nela através de gente tagarela. Bo é uma dessas sanguessugas com câmera na mão e por mais que o nome do episódio seja o da atriz que ela persegue, quem brilha por muito mais tempo é ela. Vendendo fotos de gente famosa com potencial destruidor, em troca de um dinheiro que nem supre suas necessidades básicas, ela recebe numa maré baixa uma dica de ouro, sobre uma celebridade graúda de Hollywood, que pode significar a mudança definitiva na vida financeira. Mazey Day (Por alguma razão, Jennifer Lawrence me vem à mente) largou o set de filmagem no leste europeu um dia e sumiu. A atriz atropelou um homem em uma rua deserta e fugiu sem que testemunhas pudessem comprometer seu anonimato. Ninguém jamais ficaria sabendo do acidente, mas o comportamento perturbado da moça não pode passar despercebido, ainda mais com tantos olhos virados para ela. Só que esta prática bizarra de violar privacidades, que não diminuiu muito após o advento das redes sociais, vai custar mais caro do que muita gente paga de aluguel na Cidade dos Sonhos.

 O mais divertido, neste que é visto como “o ruim” da temporada, é que nós que vimos o ocorrido, deduzimos erroneamente que o surto da jovem seja a manifestação da culpa, enquanto estranhamos o tempo de cena dado à pessoas menos glamurosas, que não vendo o que nós vimos, estão certos de que se trata apenas de mais do mesmo, ou seja, um desaparecimento forçado para fins de desintoxicação. Eu gostei de ser enganada, de ver remorso sendo um sentimento passageiro e gostei mais ainda da cena da transformação da Mazey. Nos faz pensar sobre quantas notícias engolimos, boas ou ruins, sobre os rostos mais famosos do mundo, sendo que muita coisa é fabricada ou simplesmente mal-entendida. É óbvio que este não vai ser um dos episódios mais lembrados, mas toda temporada tem um esquecido pela maioria. Câmeras digitais e rastreadores são as tecnologias homenageadas, nesta história que é sabiamente a mais curta do conjunto. Podem não ser os mecanismos eletrônicos mais surpreendentes, mas eles são os que selam o destino de muita gente, quando o bicho começa a pegar… literalmente. Não é tão Black Mirror, mas é o mais terror clássico (e surpresa) de todos. 

EP. 5 – DEMON 79

Depois de alguns episódios nos Estados Unidos, retornamos à Grã-Bretanha com este que poderia ter sido um avulso, como foi Bandersnatch e White Christmas, porque ele já se declarar parte de algo diferente, com a substituição da vinheta da Black Mirror pela da Red Mirror, uma produtora fictícia no estilo exploitation, usando a tecnologia sucateada da época, que permitia que amadores fizessem seus filmes B para passar em Drive In. É algo que Tarantino e Robert Rodrigues adoraram reviver com Planeta Terror. O interessante é que os sintomas desta tecnologia se intensificam, com mais ruído e desgaste, toda vez que a protagonista está à beira de perder a cabeça. A película foi uma inovação e tanto, mas é só quando a tecnologia chega às massas, ou no caso, nos micro estúdios, onde o demônio tem que se manifestar no porão da loja de sapatos (que seu amigo produtor conseguiu emprestado e onde grande parte da ação se passa também), que este recurso fecha um ciclo, instigando a criação de algo ainda mais acessível… o videotape. Este episódio também se destaca dos demais, simplesmente pela raridade de qualquer série, em fazer com que o público desejasse que ele fosse mais longo. 

Demon 79, é uma brincadeira super divertida que começa dentro da linguagem apropriada, com enquadramentos característicos, fotografia lavada e música suave, mas que nem sempre mantém a fachada de precariedade, porque está somente fingindo não ser uma super produção. É nesta última história que fica mais evidente, o quanto a temporada nova faz referências às antigas. Parece realmente o encerramento de um ciclo próprio, afinal de contas, estamos cada vez mais nos afastando da idéia inicial de Black Mirror, propositalmente, mas eu espero que não seja este o caso. Na história, Nida é uma vendedora de sapatos enfrentando o preconceito, por vezes velado, muitas vezes explícito, por ter a etnia pertencente às antigas colônias e não a dos invasores. Quando ela encontra um talismã amaldiçoado, o tom sério do episódio muda drasticamente para algo muito mais leve, com a chegada de um demônio, mas um demônio bonzinho, que quer fazer sua iniciação no mundo das sombras com respeito e honestidade, ao mesmo tempo em que tenta salvar o mundo da aniquilação total. A maldição requer três sacrifícios, mas todos eles dever ser executados por Nida, em até três dias. O demônio só está lá para vigiar o perímetro e fornecer sua torcida. Se existe uma moral, é que a sociedade aceita muito mais assassinos fisicamente semelhantes, do que gente decente com marmitas exóticas. Se tecnologias já influenciavam comportamentos, temos apenas a televisão, como única companheira dos solitários e reprimidos. Ainda é um Black Mirror, só que bem diferente. O importante é que Charlie Brooker está de volta e ele está animado e sem medo de alienar, tanto a plataforma que o hospeda, quanto os fãs que o aguardavam, expandindo sua própria criação, da maneira que ele acha que deve. O mundo que se exploda!