A maioria de nós nunca vai conhecer um dos piores tipos de rejeição que existe, que é aquela sentida por crianças e adolescentes que, sem os pais biológicos por qualquer motivo, são adotadas por alguém que promete amar e cuidar, mas não cumpre. Faça Ela Voltar é um filme difícil de assistir por diversas razões, porém eu acredito que a mais forte delas tem pouco a ver com terror. Testemunhar Andy não ser apenas a opção menos desejada entre ele e a irmã, como também sofrer um processo de sabotagem sistemático e encoberto, pelas mãos da nova tutora, é uma passada de perna em quem esperava sustos e barulho, ao invés da realidade que acontece com mais frequência do que queremos admitir. O coração parte com o drama, antes que qualquer cena típica dos filmes do gênero aconteça e não conseguimos imaginar algo mais monstruoso sendo feito com alguém tão jovem. Infelizmente, os realizadores deste filme são bem criativos e imaginam sim, nos mostrando coisas ainda mais assustadoras sendo cometidas contra mais crianças e ainda mais novas do que Andy, que está quase virando um adulto. O filme é sobre o terror macabro absoluto, sendo usado como pano de fundo, para uma história principal sobre gente real que opera na maldade, o que é mais preocupante e comum do que eventuais visitas de espíritos. 

O que realmente dói em pessoas como eu, que já não gostam de drama pela proximidade com alguns dos aspectos mais densos da vida real, é que se formos tomar como base o outro filme dos irmãos Philippou, Fale Comigo (2022), é que ter bastante destaque como o mocinho na história de terror, não garante o desfecho reservado para diversos mocinhos em situações sobrenaturais e de medo. Os ex-youtubers convertidos em cineastas, com moral suficiente agora para atrair pelo menos uma atriz famosa (no caso a sempre incrível Sally Hawkins), já cruzaram uma linha importante na profissão com suas narrativas, quando deixaram de lado o medo de terminar seus filmes de maneira agridoce, ou seja, algumas pessoas se salvam, mas meu Deus, que destino horrível para as que não têm tanta sorte; assim como os cineastas também abandonaram a ideia de que alguns personagens, pela pouca idade, ou vulnerabilidade, deveriam receber um passe-livre ou pelo menos um desconto do sofrimento. Dentro dos seus filmes de temática espiritual, geralmente requisitando um pouco mais de aceitação da fantasia do que o normal, os jovens não mais estreantes querem que o público com este filme, que não é tão assustador quanto o primeiro, fique mais apreensivo com o palpável do que com o etéreo. O objetivo é fazer você pensar sobre os significados da palavra “oculto”. 

Uma coisa é estabelecida nos nossos primeiros momentos com Andy e Piper: o rapaz é completamente encantado pela irmã mais nova. As consequências deste amor e devoção pela criança, ficarão mais detalhados pela história, quando Andy perceber que precisa deixar de poupar a irmã de algumas verdades, para salvar ela e a si mesmo. O pai deles, único responsável remanescente, morre de forma inesperada e em meio ao trauma e ao luto, um novo cenário se faz presente, com Andy há alguns meses de fazer 18 anos e nenhuma família adotiva querendo uma criança e… um adolescente quase emancipado. Eis que surge Laura, que concorda em receber o órfão crescido, se isto significa ter Piper sob seus cuidados. Laura, que perdeu a filha cega recentemente, vê em Piper que também é cega, a doçura e a inocência da filha perdida, dando uma preferência evidente para a menina, mesmo já tendo adotado outro menino antes da filha morrer. Andy percebe o favoritismo e é para ele perceber, mas por mais que o sentimento de abandono, ao qual ele não é estranho, machuque como sempre, a prioridade é aguentar os meses seguintes, sem encrencas, até que ele tenha idade e seja aprovado para adotar a própria irmã. O problema é que a nova mãe também quer a menina, só a menina, ou quer o que Piper tem a oferecer, com uma determinação sufocante e perigosa para os três adotados. 

Uma ideia brilhante foi escalar a sempre divertida e heróica Sally Hawkins no papel de Laura, uma vilã como poucas, pelo semblante descolado de mãezona hippie, tão contrário às artimanhas sorrateiras. Hawkins seria a última atriz que eu imaginaria em um papel desses e é por isso que a execução dos planos dela são tão verossímeis, já que apesar do comportamento por vezes invasivo e inapropriado, ela passa a credibilidade de alguém que não poderia fazer mal a uma mosca. Mesmo com truques que não são na sua maioria violentos, Laura é o arquétipo de um verdadeiro demônio, ao personificar o maior monstro de muitos dramas, como mencionado no início do texto. Uma adulta com péssimas intenções e muita influência, capaz de destruir todas as vidas sob seus cuidados, para conseguir o que quer. Talvez com uma atriz menos competente, nem veríamos o quanto Laura também é trágica. Andy tem tamanho suficiente para combatê-la com sucesso, mas enfrentar a dona da casa legalmente seria um desastre. Fisicamente, seria cadeia. Outra ideia brilhante foi ocultar a má índole dela, pelo tempo em que os adotados precisavam ser atraídos para a armadilha, não apenas atrás da fachada da excentricidade, mas distraindo o público de um comportamento estranho, com outro personagem mais estranho. Oliver, o primeiro adotado que não fala, mal reage aos estímulos externos e de vez em quando maltrata os animais da casa, me fez procurar pelo nome do ator mirim, porque a interpretação do menino é surreal de tão boa. Todos estão perfeitos em seus personagens.

Faça Ela Voltar é cruel, bem cruel. Um filme cujo caos vai se tornando cada vez mais insuportável, na medida em que um grande mistério se desenrola. Os diretores mergulharam de maneira alegórica nos danos dos maus tratos contra crianças, fazendo com que o que víssemos de insano na tela, representasse a lesão psicológica e o que aparecesse de violento fossem as marcas físicas, muitas vezes irreversíveis, de fato. É um terror para familiares, professores e assistentes sociais, que diz que as razões de um abusador nunca importam, porque jamais deveriam. Um roteiro manipulador, de execução angustiante, feito para alcançar o máximo possível de impacto no público. Mais uma realização sólida dos gêmeos Danny e Michael Philippou, totalmente confortáveis e seguros na nova carreira, criando uma obra cheia de sangue para fins extremamente sensíveis. Um ode às histórias de terror pessoal, que quase sempre acabam mal, mesmo quando supostamente acabam bem. Ao checar denúncias vindas de crianças, nada de buscas superficiais, nada de confiança prévia nos denunciados e por favor, nada de aparecer no local sem um exército de policiais. Sejam exagerados e desconfiados, imploramos, para evitar horrores pessoais, sobrenaturais ou naturais no futuro para as próximas gerações. Não é para entreter, é para chorar.