Até uma certa idade, os idênticos Elliot e Beverly Mantle viveram para o mundo como os indivíduos singulares que são. Só que em uma época não esclarecida de suas vidas, talvez ainda na juventude, os brilhantes ginecologistas decidiram viver como se fossem uma só pessoa. É claro que para os pacientes, os funcionários e os investidores da clínica Mantle, especializada em pesquisas e procedimentos ligados à fertilidade, eles são os doutores Elli e Bev com personalidades e interesses bem diferentes, mesmo atuando na mesma área da profissão. Um irmão é focado em como pode ser útil para as pacientes e o outro se concentra na utilidade que elas têm para a clínica. O que os gêmeos Mantle fazem sem que ninguém consiga perceber, é assumir a personalidade um do outro de acordo com a agenda, a conveniência e o desejo de estarem conectados como se fossem siameses, compartilhando consultas, amantes e qualquer outra experiência que consideramos pessoais, para nunca correr o risco de perderem a sincronia e a sintonia um com o outro. É inaceitável, criminoso e neste clássico dos anos 80, um mergulho fascinante na ideia de viver uma vida inteira com identidades mal resolvidas. Eles funcionam e enganam os desatentos, mas não de maneira independente, nunca.
Este foi o filme que transformou a vida de Jeremy Irons, de um ator britânico familiar para uma estrela de Hollywood bastante requisitada, que passou a fazer muito mais filmes por ano do que anteriormente, conquistando prêmios e mantendo o próprio nome relevante por décadas, em uma indústria competitiva e discriminatória. Por mais que este fosse um dos mais fáceis de digerir de Cronenberg… e falaremos mais do diretor adiante… é notável que depois dos 40 e em uma obra sob o risco de ser rejeitada pelo grande público, como tantas outras do criador underground, o ator tenha conseguido tanto destaque na carreira posteriormente. A interpretação de Irons como os gêmeos doentios é impressionante, não só porque são dois papéis diferentes em um só filme, mas pelo que Cronenberg queria que a história transmitisse. Tem uma cena em que Elliot pergunta a Beverly, como ele se saiu no “papel de Elli”, quando precisou se passar pelo irmão em uma festa beneficente. Bev começa então a imitar exageradamente os trejeitos superficiais de Elli, tido como o extrovertido da dupla, com um certo deboche e um pouco de rancor, para a total surpresa de Elliot. Os dois disfarçam a animosidade, a tempo dela ser desconsiderada com sucesso, mas é a partir dali que fica mais claro quem é quem para o público. Isto é importante, porque o diretor “esquece” de nos esclarecer a dúvida, em muitas cenas, precisando de um ator bom o suficiente para nos deixar seguros… e para nos desestabilizar na mesma questão. Eu não consigo imaginar alguém além de Irons para esta tarefa complexa.

Mórbida Semelhança é um filme frio, no qual até os cenários mais beges não transmitem o aconchego intencionado, principalmente enquanto buscamos alguém na tela para quem torcer. A direção de arte reflete o cinismo. Onde já se viu uma sala de cirurgia onde todos usam vermelho? Será que os cirurgiões queriam impedir que uma possível hemorragia, interferisse na estética visual da sala? Vira e mexe, Cronenberg passeia pela normalidade com trabalhos bem sólidos, mas é no surreal que ele realmente brilha! A extravagância dos adereços que ele adora utilizar em seus filmes, geralmente baseados em órgãos humanos, mas com resultados repugnantes, obedece aqui ao tema de Gêmeos em instrumentos metálicos para procedimentos cirúrgicos, grotescos e inviáveis, mas causando as mesmas sensações de suas versões orgânicas em outros filmes de Cronenberg: aversão e reflexão. Nada do que o diretor cria como bizarro é para ser aceito como normal, mas é também impossível passar por uma destas criações extremamente imaginativas, sem questionar a aparência dos objetos reais que ele está imitando grosseiramente. Quanto ao restante dos aspectos visuais deste filme, eu gostaria de destacar também o quanto é admirável que um diretor especializado em efeitos práticos, tenha garantido resultados mais duradouros para convencer o público, que se encontra completamente imerso nos diálogos entre os irmãos, de que Bev e Elli são dois personagens interagindo e dividindo uma tela em tempo real.
O ponto de virada no filme, não acontece quando os gêmeos sofrem uma exposição. Serem desmascarados era algo inevitável, por qualquer namorada compartilhada mais atenta, ou por uma confissão regada à álcool e as duas possibilidades tomam forma bem cedo no filme, para sinalizar a total falta de importância que revelações embaraçosas possuem na narrativa. Por boa parte da história, existe uma noção de hierarquia, de domínio e sufocamento, mas há principalmente um entendimento sobre as personalidades distintas, que conseguimos identificar independentemente das roupas utilizadas, ou a quem os irmãos estão querendo enganar… até que levamos uma rasteira e passamos a misturar o confiante com o inseguro, aguardando mais explicações nas cenas seguintes, antes de tirar conclusões precipitadas. É como se a frase de efeito de alguns posters do filme, não fosse um efeito e sim um alerta: “Dois corpos, duas mentes, uma alma!”. Não é exatamente uma história sobre enganar o público. Quem vive a vida no fingimento, fica sem perceber a tempo de escapar do perigo, que vive de fingimento para si mesmo. Enquanto acompanhamos as primeiras sequências do filme, para determinarmos de onde virá o soco que vai derrubar os protagonistas, o diretor nos diz que não há a mínima necessidade de punição externa. Sem individualidade e privacidade, ninguém neste planeta consegue se manter são por muito tempo, mas o que os atinge é ainda pior do que justiça divina… já que estamos lidando com dois homens que não aceitam serem dois.

Um é o glamour e o outro é a pesquisa. Unidos, eles quase formam uma pessoa normal e inteira. Em um filme comum de terror, a chegada de um interesse amoroso seria o motivo para a queda de um império, mas sob a tutela do diretor de A Mosca e Naked Lunch, um profissional que foge da simplicidade, a mulher entre os irmãos é o catalisador da uma mudança, que nenhum dos gêmeos tinha a mente em seu estado total, para entender que não aguentaria. Os enganadores da história são os maiores enganados e a verdadeira exposição, é aquela que mostra as consequências de uma escolha imprudente, tornando a meia-vida insustentável. Uma verdadeira obra-prima da psiquiatria em forma de filme, demonstrando todo o terror que mentes fragmentadas podem produzir.
