Pouco tempo após ser lançado, o filme de 1922 dirigido pelo alemão F.W. Murnau, recebeu uma sentença pavorosa, seguindo um processo por plágio movido pela viúva de Bram Stoker: a destruição de todas as cópias e negativos, fazendo com que os únicos registros que temos hoje daquela obra, viessem da segunda ou terceira geração de cópias, que foram produzidas para a exibição em cinemas estrangeiros. Não precisamos discutir a legitimidade da decisão, porque o plágio é irrefutável e a família do criador de Drácula não fez nada além de exercer os próprios direitos, mas é de cortar o coração que até as versões mais cuidadosamente restauradas do filme, não disfarcem os efeitos do tempo, reservados geralmente aos clandestinos. Só que, se a ideia da família Stoker era apagar Nosferatu da história do cinema, o plano falhou feio! Até 1972, os suecos baniram a exibição do filme, mas não por apoio à decisão legal e sim porque o “terror excessivo” foi considerado chocante demais. Em 1979, Werner Herzog refilmou o clássico chamando o vilão de Drácula na cara dura! A performance icônica de Max Schreck, foi homenageada em 2000 no longa A Sombra do Vampiro (Shadow of the Vampire)… ou seja, nunca paramos de falar no filme. Nem tudo no cinema precisa de remake, mas há de se reconhecer que Nosferatu merecia uma, ou mais repaginadas.
Eis que surge Robert Eggers, o gótico do terror moderno, para presentear a história adaptada por Murnau com algo necessário, que se tornou a especialidade do diretor: a beleza arrebatadora dentro do contexto fúnebre. É sobre mais do que nos oferecer imagens que não estão riscadas, granuladas ou em falta entre um corte e outro, como acontece com o filme original. Eggers, sem desviar da proposta predominantemente sombria, ou fugir de cenas realmente escuras, nos mostra toda a elegância dos bairros pobres alemães no século dezenove. Rachaduras são encantadoras e cenários opacos são aconchegantes. Tudo é lindo de se ver, até quem, por escolha do diretor, mantém a teatralidade do cinema mudo, com suas expressões e gestos exagerados. A fotografia é, resumindo em uma palavra, impecável! O que esta adaptação renova, são as ideias outrora revolucionárias, sobre o significado da presença de um ser demoníaco na comunidade, mas com reservas. Como Copolla que adaptou Drácula (1992) mantendo o stop motion, a manifestação de Nosferatu para o público atual, conta com técnicas avançadas de filmagem, mas não dispensa os truques simples e é muito interessante que, os olhares mais críticos e cínicos diante da simplicidade que Eggers mantém, não duvidem do alcance geográfico e do tamanho dos poderes do vampiro, como aconteceu na versão original com nossos inocentes avós e bisavós.

Quando falamos em mudanças na narrativa, é também importante que exista um equilíbrio sobre o que modernizar e o que deixar quieto. O advento do som diegético, obviamente nos propicia diálogos e por consequência, uma riqueza maior de detalhes sobre a história. Textos em cartelas têm suas limitações, mas não apenas sobre informação. A fala contínua conserva o ritmo de uma cena. Não que o filme seja cheio de falação só porque pode, mas é bom que as circunstâncias da ida de Hutter, o corretor de imóveis, para a Transilvânia onde fica o castelo do Conde Orlok, estejam mais esclarecidas, mesmo que ainda pouco plausíveis. Assim como é mais fácil aceitar a conexão entre o vampiro e Ellen, a esposa de Hutter, tão crucial para o desfecho do filme. No quesito meio a meio da modernização, vemos que o intrigante fenômeno da projeção astral, tão explorada no terror de agora, se une ao sonambulismo do filme-base, igualmente curioso para os de antigamente. De qualquer forma, com todas as explicações e facilidades de se compor a progressão dos eventos, é com prazer que percebemos intocado, talvez o aspecto mais importante, mais influente e fundamental, para fazer do vilão uma grandiosa referência do vampirismo no cinema (tanto ou mais do que Vlad), que é a antecipação da primeira aparição do monstro e em seguida, a espera pela chegada dele na cidade de Hutter, depois de passarmos um bom tempo no castelo com Orlok, mas vendo muito pouco dele.
Caramba, eu quase me esqueci de que A Última Viagem do Demeter (2023), o filme que aborda somente o transporte de Drácula da Transilvânia para Londres, tem o conde oficial como tema, mas o visual segue a linha monstruosa de Schreck, ao invés da linha requintada de Lugosi. É mais uma amostra da importância de Orlok no cinema e do quanto Nosferatu acabou permitindo pelo menos, que qualquer criador desse a própria visão a um ser que depende de sangue e abomina a luz do sol. O look do vilão aqui é próprio, mas é um original bastante inspirado no monstro em decomposição, não no nobre de gel no cabelo. Através de técnicas de maquiagem e próteses modernas incríveis, o medo está nas mãos de Bill Skarsgård, que encarna o personagem dando voz (e que voz!), história de origem e planos para o futuro. Pela segunda vez na pele de um vilão, que carrega o peso de um intérprete anterior inesquecível, o ator com uma responsabilidade tremenda faz um ótimo trabalho novamente. Sua atuação não supera a de Schreck e eu acho que ele não tem este objetivo, mas ele encara Klaus Kinski sem medo… e Kinski é um Brando europeu! Meus elogios se estendem ao restante do elenco, na maioria bem jovem, atuando no mesmo páreo dos mais experientes, como Willem Dafoe (que também já foi Nosferatu no cinema, de uma certa forma).

O que eu achei brilhante neste trabalho de Eggers, é que a intenção não foi agradar a audiência moderna. Ele fez questão de reproduzir elementos que consideramos antiquados, para provar que a linguagem do original é atemporal. Ele fez um filme que valorizou ainda mais os que vieram antes, sem se diminuir. Muitas cenas se repetem entre as versões, assim como a histeria dos personagens e nada nos irrita, porque o tormento é constante, representado das maneiras mais adequadas para cada geração. O exemplo aqui é a luxúria vinda de um amigo do casal, sempre mostrada com destaque e com toda a naturalidade, ao contrário da de Ellen, que é contida, mas considerada o grande problema que provoca mortes por toda a cidade. O diretor sabe em que época está e como tirar proveito disso, como vemos no triângulo sexual (não amoroso) entre os personagens principais, mas Eggers mergulha nos costumes de uma época que precede a do primeiro filme, sem medo algum de parecer mais esquisito do que sempre foi, mostrando que o grande condutor da história, foi o cotidiano que inspirou a imaginação do escritor na obra primária. Pode não ser o “medo insuportável” que os nossos antepassados sentiram, mas não importa. Ele foi feito para ser curtido e contemplado, não temido.
