Kelly Anne está tão obcecada, que dorme todas as noites na rua, em um beco próximo ao prédio do tribunal, para não correr o risco de ficar sem um lugar na limitada plateia, quando as portas do edifício se abrirem na manhã seguinte. O julgamento, notório no Canadá pelos detalhes sórdidos, tem como réu um possível serial killer, que não apenas tirou a vida de três adolescentes de uma forma lenta e monstruosa. A promotoria também acusa o autor de gravar as mortes e distribuir para uma clientela fechada, nos cantos menos monitorados da internet. O conteúdo criminoso gravado, descrito por uma promotora revoltada para um corpo de jurados chocado, é de virar o estômago. É ainda mais desconfortável, vendo o quão pequeno é o tribunal, saber que os familiares das três meninas, Camile, Justine e Kim, escutam a todas aquelas atrocidades na companhia do suspeito, que está no mesmo local, mas dentro de uma cabine de vidro, provavelmente para a própria proteção. Só que a câmera está interessada, sempre procurando, mesmo desfocada, em Kelly Anne, uma peça que não pertence a este jogo, mas se coloca nele mesmo assim. Por que estamos vendo a história sob a ótica de uma personagem não-envolvida?
O filme começa como um drama legal, exibindo nos primeiros minutos um plano sequência tão longo e bem ensaiado que fica impossível determinar o ponto de partida, mas fica claro que a dinâmica do tribunal será um pano de fundo, quando a tomada sem cortes só termina na curiosa e nas reações dela, literalmente roubando a cena dos afetados pelo crime. O restante da narrativa se desenrola entre uma investigação paralela, só que não exatamente amadora por parte da protagonista e cenas da vida dela, tão normal, ainda que ela trabalhe como modelo, que a pergunta que não quer calar é se a jovem não tinha nada melhor para fazer com o próprio tempo. Além de uma conexão temporária com uma estranha, não vemos amigos, namorados ou familiares, mas não há sinais de melancolia ou busca por conexões duradouras. Com uma cara forçada de paisagem, atípica para alguém que trabalha com expressão corporal, ela se senta na plateia tentando sumir entre jornalistas, escritores, talvez futuros criminalistas e estudantes de direito, como uma sombra sempre de preto, sem deixar suas intenções evidentes, nem mesmo para nós. A jovem também vive de jogatina online e sendo uma atividade lucrativa para ela, Kelly solta uma frase a respeito que só serve para aumentar o seu ar de mistério: “O segredo é usar o tempo, ser paciente e explorar os jogadores emotivos”… Quem a escuta responde: “Você é diabólica!”… O que você está aprontando, Kelly Anne?

Red Rooms, dirigido por Pascal Plante e falado em francês, trás o terror sob um ângulo diferente, com uma personagem central se movendo sempre nas sombras, no que se refere a uma explicação para tanta dedicação, especialmente quando não há ninguém na história para ser resgatado e o principal suspeito já está sob a custódia da polícia. Não é como se Kelly fosse fã do réu… essa personagem também existe e ela é trágica e hilária, além de outro exemplo de compromisso enigmático com o caso, que o diretor explora como um fenômeno em estudo. Com o mesmo entusiasmo que Kelly comemora o acesso clandestino à informações do caso que nem a polícia possui, ela larga a pesquisa para iniciar uma série de exercícios físicos, realizando ambas atividades de maneira obstinada e a ênfase da conexão com o crime, é a mesma que o diretor dá para a falta de conexão. É como se a presença dela na própria história não fizesse diferença nenhuma, ou a interferência no caso fosse por puro entretenimento. Uma manobra arriscada do diretor, que em teoria faria o público repensar o investimento no filme, mas o que acontece é exatamente o contrário. A confusão sobre o nível de envolvimento e o motivo do envolvimento, é a força que move o filme e nos mantém constantemente intrigados.
Por mais que Red Rooms não tenha pressa para resolver seu plot, já que de acordo com as autoridades tudo, ou quase tudo já está resolvido, o ritmo do filme não sofre de lentidão. Somos levados para territórios desconhecidos, que deveriam ser familiares para nós, que não vemos histórias de terror somente na ficção, mas como estamos sempre focados em vítimas e criminosos até na vida real, jamais prestamos atenção nos coadjuvantes de crimes violentos, como os que cercam estes acontecimentos por pura curiosidade mórbida, por exemplo e é por este motivo que muita coisa no filme parece inédita sem ser, despertando o interesse do público em qualquer coisa mostrada e em coisas que achamos estarem sendo propositalmente escondidas. O dito, o não dito e o insinuado, formam um trio no qual cada parte tem igual importância, por continuamente modificar as teorias que surgem sem parar nas nossas cabeças. Eu vi cenas neste filme, que nunca imaginaria em um terror com um tema tão pesado, como a inserção de uma sequência em um talk show noturno, que não abandona o humor por nada, nem por respeito ao teor violento dos crimes. Como sugere a fotografia nos créditos de abertura (que se estende por todo o filme), mostrando um cenário exageradamente azulado, contrastando com os nomes do elenco e da equipe em vermelho-sangue, esta é uma história de elementos fora do habitat natural, desde a terceirização da investigação já concluída, à visibilidade das realidades paralelas ao julgamento, estrelando as “Marias-tribunal” que assistem ao julgamento sem vínculo aparente. Tudo com o intuito de fazer deste um filme único.

Por toda a história, esperamos o momento em que o pau da barraca será chutado e seremos obrigados a ver os vídeos dos assassinatos. O filme no entanto, segue a linha “Thesis” (1996), que também tinha os supostos filmes snuff (mortes reais) como tema, mas não perdia o decoro com cenas apelativas. Poupar o público da violência, não deixa o filme menos chocante. O envolvimento excessivo da protagonista com o vhs que ela encontrou por acaso, no maravilhoso filme de Alejandro Amenábar, a colocou diretamente na linha de perigo do vilão e eu não posso revelar as consequências para a modelo de Red Rooms, além da perda de alguns contratos publicitários, mas é tranquilo dizer que o desfecho é, depois de muita especulação, imprevisível! A ideia deste longa, é mostrar o papel da sociedade inteira em relação às monstruosidades que nos cercam, porque quando o assunto é crime hediondo, não existe esse negócio de lugar de fala. O filme é sobre todos nós, os não-participantes interessados, com menção a algo interessante que vira um parênteses no filme, que é a mecânica por trás da fabricação de tietes de bandidos. Como combater algo imbatível, quando não se pode conter o anonimato na internet ou a demanda por este tipo de fetiche, que sempre exige sacrifícios? De acordo com o diretor, se a sujeira causada pelos monstros não pode ser evitada, que ela seja pelo menos apaziguada, com outro tipo de sacrifício.
