Com a excessão de algumas liberdades criativas dos realizadores, em relação a possíveis motivos para possíveis padrões de comportamento, O Banho do Diabo é, mantendo nomes verdadeiros, datas precisas e uma descrição atenciosa dos acontecimentos, um filme feito com base em registros históricos do norte da Áustria em 1750. Um terror incomum, mas com temas tão pesados, que esta base fincada na realidade compensa a ausência dos elementos convencionais do gênero como aparições, sustos ou até o dito terror psicológico, porque mesmo com cenas difíceis de serem digeridas e mortes violentas, fica explícito que até as piores ações de qualquer personagem, estão livres da intenção de causar sofrimento. A intenção é acabar com ele! O posicionamento do filme não é o do não-julgamento, porque mesmo sem maldade, há dano e ele é devastador. Só que existe também uma tentativa respeitosa de compreensão do estado mental da população da época, vivendo em uma comunidade livre e pacífica, porém, com uma inclinação para a melancolia, cujos resultados monstruosos e assustadoramente frequentes, pediam algum tipo de estudo sério e imparcial.

O filme abre com uma morte pavorosa, ao mostrar uma mulher jogando um bebê do alto de uma cachoeira. Porque a vítima chorava sem parar e a minha mente buscava as referências modernas, eu imaginei que se tratasse da mãe da criança e de uma depressão pós-parto. Sendo este um conto de uma época sem anestesia ou tratamentos para enfermidades atemporais e isto já é um terror só de imaginar, seria uma possibilidade plausível, mas neste caso o ato é cometido por uma estranha, como um tenebroso meio para um tenebroso fim. Esqueça oferendas diabólicas, neutralização de um futuro anticristo ou as execuções de planos de vingança, todas elas igualmente costumeiras no terror, porque o filme fala de atividades que se tornaram padrões da realidade, não da ficção. Após o feito, a assassina caminha com firmeza até a propriedade que podemos interpretar como uma delegacia, confessa o crime e com a exibição pública do corpo esquartejado, obtemos a certeza da execução da pena. O perturbador é que, com a serenidade estampada no rosto da assassina, vemos que não está reservado apenas aos carrascos a convicção sobre o dever cumprido.

Na história que tem uma protagonista, mas não se limita às angústia particulares dela, seguimos a jovem camponesa Agnes, a partir do dia do casamento dela com o pescador Wolf, no pacato, simplório e unido vilarejo do século dezoito. Aparentemente, o casal tem o sinal verde para começar a vida em paz. A casa comprada por Wolf, é um pouco mais rústica do que Agnes esperava e o dinheiro gasto é mais do que eles tinham, mas com o tempo as contas certamente se acertariam. Não é nenhuma tragédia quando ela leva uma bronca da sogra, por não executar as tarefas rapidamente, ou estar longe da própria família, que mora na cidade vizinha. Afinal, estas são algumas das características negativas de casamentos normais até os dias de hoje. Como todas as mulheres da vila, até aquelas com a gravidez em estágio avançado, ela precisa trabalhar e muito, para ajudar no sustento da família. O sorriso no rosto da jovem, ao encontrar insetos interessantes e flores exóticas, é tão verdadeiro e ingênuo quanto o de ver o marido se aproximando da casa, da qual ela tem dificuldade em cuidar sozinha, por ser uma criatura de predisposição contemplativa, que perde a noção do tempo com frequência e é bem aí que, tentando antecipar de onde sairá a faísca responsável pelo incêndio metafórico, eu deixo novamente as referências atuais tomarem conta e imagino que o espírito de Agnes é livre demais para aquela vida exigente. Só que ela quer aquela vida e quer também algo que parece simples, mas que ela não consegue ter. O que o filme sugere é que, apesar do desejo dela ser pessoal, esta pode muito bem ser a história de qualquer pessoa naquele lugar, porque o problema não é o inalcançável, mas sim viver em um ambiente que ainda não havia desenvolvido a capacidade para considerar um plano B.

A diferença entre os frustrados conformados, como Wolf, que aprendeu a conviver com o desgosto… e os que não se adaptam, é o grau de sensibilidade. Quem não mata a própria essência, acaba fazendo algo pior. É uma vida dura, que empurra as pessoas para uma confiança perigosa em superstições e crenças, fundamentadas em uma mistura desorganizada do legado local com influências estrangeiras, pelo que é demonstrado nos costumes do povo e principalmente pelas três cerimônias, totalmente contraditórias, que são celebradas pelo filme. A primeira, um casamento cristão, ou o que os locais decidiram absorver daquela tradição. A segunda, parece ser uma festa pagã de colheita, na qual a bebedeira tem potencial suficiente para destruir reputações para sempre. A terceira é indefensável, de tão macabra e eu desconfio que esta última seja o alicerce para aquela sociedade. Se vilania está ligada à maldade, ela não existe no filme, mas todos têm a chance de serem algozes na vida de alguém. É tão difícil ver Agnes obedecendo ordens básicas do grupo, como recusar dois pães a um trabalhador faminto, porque sabemos que ela não tem a estrutura para suportar, o que regras desumanas que ela é forçada a impor, farão ao seu espírito. A ruína moral é inevitável e o alívio que muitos como ela encontram, é imperdoável. Um pesadelo inescapável, para os nossos frágeis e para os nossos brutos antepassados.

O filme é longo, mas nunca sem eventos significativos. Eu adoraria falar da belíssima fotografia, mas infelizmente não é somente a paisagem bucólica que ela mostra. A dupla de diretores Veronika Franz e Severin Fiala, de Boa Noite, Mamãe (2014) e de O Chalé (2019), nos trás mais um filme de terror atípico, com foco na loucura e neste ela é tão generalizada, que mesmo sem cercas ou perseguições, as vítimas se animam para escolher sair do terror. O filme possui diversos pecadores e apesar de alguns receberem perdão… e dos critérios para esta dádiva serem duvidosos, nenhum deles é enterrado. O cenário, que deveria ser convidativo pela beleza, se transforma em uma cova aberta repleta de cadáveres, expostos para familiares, amigos e estranhos encontrarem, reforçando o clima sufocante para os sensíveis e gerando ainda mais tragédias para os adaptados. O pior é que nem é proposital. Somente mais um hábito nocivo, do qual ninguém se deu conta quando ele foi inventado, como tantos outros neste pedaço da história humana. Nos faz pensar sobre quais costumes prejudiciais mantemos sem nos dar conta, nos dias de hoje, pelo menos. Eu espero!