Debaixo dos escombros de uma cabana na floresta, os restos mortais de um homem assassinado são convocados para expressar um desejo de vingança, que nem o túmulo pôde conter. Em um estado indecifrável de decomposição, que não nos permite determinar a data da morte, ou mais adiante, como é possível que ele tenha se tornado tão grande e tão forte (um questionamento que fãs de terror têm feito até hoje sobre o vilão de Sexta-Feira 13), o brutamontes caminha, nunca corre, confiante pelo bosque, sem dizer uma palavra ou mostrar o rosto. O intuito do filme não é fazer com que o público perca a paciência pela vagarosidade da entidade, mesmo porque, o jeito sossegado dele não impede a progressão da história, que também é a mais básica possível. O lance é nos fazer perceber, tendo desta vez a visão dos bastidores, o que faz um slasher dar medo, mesmo sendo cheio de clichês, de revanches desproporcionais, mortes de desenho animado e maníacos escapáveis, contando que ele não dê bandeira cedo demais sobre a própria essência resiliente e sobrenatural.

Uma Natureza Violenta, por apresentar um ângulo diferente e desafiador, a uma vertente familiar do terror, pega emprestado técnicas do Nouvelle Vague por exemplo, com cortes que quebram a continuidade propositalmente, para acelerar o caminho percorrido por “Johnny”, que obviamente precisa ter um nome comum e um histórico de injustiça sofrido em um corpo frágil. Não estamos na França entre os anos 50 e 60, mas de uma certa forma há uma espécie de revolução, não em mostrar o ponto de vista do vilão, porque isto sempre tivemos, mas deste tipo de vilão, cujo mistério cercando a própria existência, sempre foi uma das regras invioláveis para o bom funcionamento dele. Outra lei burlada foi a do uso constante da máscara, mas não para as vítimas, para nós e com toda a sinceridade, mostrar o rosto da entidade não era uma exigência para o entendimento da cena, mas já que estamos humanizando o personagem desumano, animalesco (como explica uma personagem de fora do terror) e rato de academia, algumas expressões faciais naquela cara feia, dão suporte a proposta educativa desta empreitada. 

Despertado de um sono intermitente, que deveria ser eterno há décadas, mas os turistas não respeitam nada, Johnny está em busca de um amuleto, o único que o controla no cemitério particular no qual ele descansa. Isto quer dizer que qualquer um visto segurando um objeto reluzente… ou brigando, flertando, fumando, praticando Yoga ou chamando a atenção do vilão de qualquer maneira, principalmente sozinho, vira um alvo a ser perseguido e eliminado, como é o costume nestes filmes. É interessante o acesso que recebemos ao lado astuto de um personagem irracional, quando ele tem o objetivo prático de recuperar seu pertence nos ataques, mas desiste da investida contra um grupo inteiro, sentado tradicionalmente ao redor de uma fogueira de acampamento, para pegar os vulneráveis em momentos de solidão. Louco, nunca idiota! Toda vez que ele não acalma o próprio entusiasmo (e somos convidados a testemunhar estas recaídas também), aumentam as chances de escapatória dos adolescentes de trinta anos que ele caça. E quanto mais Johnny aguenta o apetite por sangue, mais somos presenteados com diálogos horrorosos, dramas evitáveis e decisões ridículas por parte de quem nem está atuando com tanto entusiasmo assim. Defeitos deliberados, eu devo acrescentar.

É por estes e outros motivos, que a comédia, outro gênero introduzido de forma compensatória, é tão presente na história. É um absurdo, com tantas folhas secas no chão, que ninguém escute o vilão se aproximando, mas não dava para se indignar com a surdez da galera antigamente, porque a trilha de suspense, que aqui não existe, abafava tudo. Abafava também o que o assassino escutava e gente, como eu ri da cena em que dois personagens escondidos entre as árvores, os mais “gente boa” do grupo, acabam revelando toda a estratégia de fuga, porque não se dão conta do volume de suas vozes, em um ambiente completamente silencioso. Johnny escuta o deslocamento sorrateiro no bosque, de um lado para o outro em Dolby Surround. Só que nada é mais escrachado em termos de humor no filme, do que a violência exagerada empregada nas matanças. A do Yoga é a minha favorita e eu estou certa de que ela se tornará um ícone, como foi o moleque no saco de dormir sendo golpeado contra uma árvore, por Jason Vorhees. Em outra morte, o vilão com acesso a uma serra elétrica e a um mocinho que se deu mal tentando virar herói, há uma tentativa de desmembramento lento e gratuito, mas Johnny deve ter se ligado no tempo de execução do filme e seguiu logo para a cabeça, depois de ter demorado para tirar um braço. 

Alguém mencionou que esta era uma obra somente para fãs de terror e eu concordo. Foi inevitável para mim, com uma narrativa experimental deste porte, procurar opiniões sobre o filme fora da nossa bolha e o resultado não me surpreendeu. Próximo do final do filme, há uma mudança de perspectiva que alguns críticos e membros do público encararam como uma traição, ou uma espécie de desistência do artifício utilizado até aquele momento. Talvez uma falha, um truque que não funcionou, eles disseram, sobre o inédito ponto de vista do serial killer, mas o nervosismo paralisante que uma simples mudança de foco me causou, dentro de uma história sustentada por comédia, cinismo e… pela ausência de medo até então, me indicam o controle total sobre a situação, pelo novato diretor Chris Nash. Nesta produção reside a a prova de que a fórmula funciona! Lá está a nossa Final Girl, sem saber para onde correr para escapar de estar em um slasher dos anos 80, já que termos modernos e corriqueiros como “cancelamento” e “masculinidade tóxica” sendo proferidos pelas vítimas, não ajudaram em nada. Ela está se dirigindo para um portal entre duas dimensões: a do terror e a da normalidade, mas o formato do filme continua quadrado, como se ele estivesse sendo exibido em uma televisão de tubo, então não dá para confiar em nada, mesmo que o resgate tire a granulação da imagem e a salvadora, completamente alheia ao universo no qual se meteu, tenha que ouvir uma mentira sobre o acontecimento, para acolher a vítima sem julgamentos. Agora que sabemos que eles não precisam apertar o passo para alcançar ninguém, nem a garota nem nós tiramos os olhos do bosque por um segundo. Está mais do que claro que distanciamento seguro não existe e que o bicho papão só pára, quando se dá por satisfeito.