Moloch, primeiro longa do holandês Nico van den Brink, tem uma estrutura incomum que o divide em três partes desproporcionais, sendo o prólogo, curto, completamente dentro do terror; o meio do filme todo cheio de mistério, drama, romance, uma violência que não apenas dá medo, mas também anuncia que poderá haver mais dela no futuro e… o finalzinho, quando o filme volta para o terror com um twist assombroso e maravilhoso. A sequência de abertura mostra uma casa afastada em um bosque, com uma fumaceira ao redor que me lembrou um slasher típico dos anos 80. Eu acho que é proposital passar a ideia de isolamento com um toque de surrealismo, porque o bicho papão não é inédito naquele local, mas ele tem época certa para se manifestar. Quando acontece, um clima sinistro é acionado para que os personagens fiquem presos em uma bolha, na qual impera algo fantasioso e exagerado de um terror juvenil, feito para assustar e depois ser esquecido assim que a bolha estoura. Os envolvidos que sobrevivem estão traumatizados, mas lembrarão da ocorrência no futuro como uma fatalidade e deixando de fora as circunstâncias inexplicáveis embutidas nela. A vida que segue, entre um acontecimento de terror e outro, não é perfeita, mas é dentro da normalidade, sem fumaça sobrenatural para indicar o contrário.
Quando conhecemos a primeira versão dos personagens, estamos em 1991 em uma grande e bem cuidada propriedade rústica, com pessoas modestas morando nela. A parede de madeira ilustra o histórico da família, com uma sequência de fotografias semelhantes no tema, mas com uma distância visível entre elas, relacionada à década das capturas das imagens. As fotos sempre são tiradas em frente a casa, à luz do dia e apenas registrando os três membros femininos do clã. Não se trata de uma linhagem divina, extraída de sucessões de concepções imaculadas, porque existem homens envolvidos no processo, mas são sempre apenas as mulheres, avós, mães e filhas, os alvos da entidade maligna atrelada àquela floresta e são elas quem precisam se sujeitar às vontades do monstro de tempos em tempos. É o que a pequena Betriek testemunha em 91, enquanto o público está escondido com ela na despensa da cozinha e o bicho literalmente come solto pela casa, em um episódio de violência que tira a vida da avó dela. Nos dias de hoje, ela está viúva e de volta à casa da infância, morando com a filha Hanna, com os pais e com a memória convenientemente falha. O assassino da avó nunca foi encontrado e anos mais tarde, o marido sofreu um infarto repentino, gerando em Betriek um complexo de inferioridade, que ela atribui aos “julgamentos da pequena cidade sobre a família trágica dela”, mas a verdade é que, no decorrer do filme, é óbvio que o restante da população não está nem aí para ela, porque tem mais o que fazer. O sentimento que realmente importa vindo da jovem, ou seja, aquele no qual devemos prestar atenção é a animosidade sutil em relação à mãe, Elske, uma senhora animada e bondosa, mas cheia de sequelas e traumas, que ela se recusa a tratar, para a raiva e preocupação de Betriek.

Essa negação da protagonista, de estar vivendo uma história de terror, acontece também com o público na maior parte da trama, através do grande número de alarmes falsos espalhados por todo o enredo. No terreno próximo à casa, uma equipe de escavação internacional está trabalhando após descobrir diversos corpos, enterrados sem caixão em diferentes épocas, mas extremamente bem conservados, só que estamos distraídos com a morte do maloqueiro local ali perto, abrupta e estranha. Estamos preocupados com a reação do pai do rapaz e da possibilidade de retaliação contra a família de Betriek… a amaldiçoada, por suspeitas descabidas e desejos vingativos. A câmera foca na cara do policial, desconfiado e eu sinto que ele será tão importante para o filme quanto a esposa do professor, já que o marido está tendo um caso com Betriek e o arranca-rabo pode acontecer a qualquer minuto. Não estamos sendo induzidos descaradamente a procurar sinais de perigo, é que o filme se comporta de maneira realista e não estamos acostumados com isso. Como os outros personagens estão vivendo fora do terror, eles não causam conflitos tolos, mas é impossível não esperar o contrário. Até o chefe dos arqueólogos, Jonas, que ganha bastante tempo de cena, a ponto de se envolver com a família central do filme, é visto como uma figura significativa, mas no final das contas, é o povo das fotografias da parede, que está em um nível de interesse muito acima de todos para o terror, mesmo que as fotografadas mais recentes da família evitem enfrentar este fato.
Eventualmente o histórico local apresenta sinais de repetição, porque os tempos da fumaça enigmática se aproximam. A idosa da família sofre um atentado, mas desta vez ele não é fatal. O mais estranho é que o maluco homicida que invade a casa tarde da noite, sobrevivendo ao contra-ataque e indo parar na u.t.i., era até aquele momento um sujeito pacífico, ou assim garantem seus colegas de trabalho das unidades de escavação. O hospital que recebe o quase assassino, é o mesmo que atende a matriarca atacada e a sequência de eventos desencadeados por esta coincidência é memorável por diversas razões. A principal delas é a reação histérica da vítima após receber alta, mas não pela proximidade do criminoso, já que ela não tem o conhecimento sobre isso. Elske grita feito uma louca no estacionamento do hospital, por Betriek estar conversando com um amigo, só que o público dará o valor devido a esta bizarrice e a muitas outras que parecem insignificantes, apenas depois que o filme terminar. Naquele momento, você ainda estará processando a cena anterior, na qual a curiosa Betriek, tentando entender o motivo por trás do ataque daquele estranho, observa do lado de fora o quarto e a família chorosa do sujeito, até que o filho mais novo dele a percebe e vai atrás dela. É uma criança pequena, que fala outra língua e segue a curiosa, entrando no elevador com ela. Por alguns segundos, por conta de todas as incertezas que o filme proporciona, das ameaças que não se concretizam e principalmente dos vilões acidentais que nem sempre sabem o que estão fazendo, eu tive pavor de um menininho, ainda que a ameaça aqui fosse a de um simples encontro embaraçoso em um lugar fechado. O terror é desprezado por tanto tempo, que não dá para prever o que irá acontecer, mas ninguém deste lado da tela consegue relaxar.

Eu não conheço ninguém que seja fã de terror folclórico e por este motivo, a grande sacada da direção foi manter esta informação sobre a história na surdina, como se o filme não estivesse completamente imerso nela. É algo sem credibilidade, normalmente visto como uma fantasia, fruto da crença antiga de qualquer povo, para os personagens no filme e para os fãs de terror que o assistem. Nós já sabemos que o filme é sobrenatural desde o princípio, mas é com um sorriso de quem compartilha uma lenda local assustadora para um turista, ou com a inocência de uma encenação escolar, da qual a pequena Hanna faz parte, que aos poucos a verdade se revela e quando entendemos tudo, este conto de aparência simples ou genérica, porém repleto de boas ideias e com uma condução impecável, provoca um choque, que fará o público relembrar ou ver novamente o filme e constatar que nem todas as dicas foram sutis, mas o filme te pegou mesmo assim. Falando na peça infantil, é impressionante que a escola permitiria a mistura do lúdico com tópicos muito adultos, com morte e outras coisas inapropriadas para a molecada, na tradicional apresentação escolar que acompanha as festividades anuais sobre a lenda. O filme é falado em holandês e inglês, mas é Europa em essência, um pouco mais livre, desobediente e bem diferente de Hollywood. De vez em quando é bom ficar de olho nas novidades do velho continente.
