No Japão, o pacato Nobuyuki é o dono de uma pequena loja de aquarismo, casado com uma mulher entediada e pai de uma adolescente apocalíptica. Uma noite, Mitsuko é pega roubando em uma loja e o incidente gera um resultado incomum. Sem saber exatamente o que fazer para corrigir a filha, mas apavorado com a ideia de que ela vá presa, ele aceita a sugestão da testemunha/denunciante do roubo, o Sr. Murata, um idoso simpático que também tem uma loja de aquarismo, só que muito maior, melhor localizada e bem mais lucrativa. O generoso Sr. Murata, que imediatamente se torna um grande amigo da família, oferece um emprego para a filha de Nobuyuki na mega loja, na qual ela trabalharia com outras jovens que dividem um dormitório e se viram sozinhas. A moradia faz parte do emprego e Mitsuko fica muito empolgada com a ideia de sair de casa. É uma oferta estranha vinda de um homem que eles acabaram de conhecer, mas conveniente, de acordo com um flashback que acontece minutos antes da decisão do pai, mostrando uma briga bem feia entre a jovem e a madrasta recente, na qual somente a madrasta apanhou. Nobuyuki está apreensivo, mas concorda com a sugestão, que no momento parece ser a solução perfeita, para não permitir que a filha se perca na vida por conta da própria rebeldia.

Como aquarista eu devo informá-los de que o meu pequeno tanque de 30 litros e tudo o que está dentro dele, é a coisa mais valiosa que eu tenho. É um hobby caro, que certamente gera retorno aos lojistas especializados, mas eu não imagino nenhum deles dirigindo uma Ferrari, como faz o Sr. Murata. Excêntrico ao extremo, ele fala alto, fala demais, elogia e cativa, é espalhafatoso e inconveniente. Uma verdadeira figura, para a qual é muito difícil dizer não, mesmo que ele não demonstrasse, publicamente, o descontentamento em não ter o que pede, ou exige das pessoas. No fundo, aquele exagero todo nos gestos e nas palavras incomodam Nobuyuki, mas ele ainda não sabe a razão. Qualquer um de nós com experiências ruins, ocasionadas por pessoas muito ruins, já sacou que todo aquele barulho é uma forma de distração. Se o sinal de alerta não se fizer presente, antes mesmo de Murata cometer o primeiro crime (em cena), em uma determinada porção do público vendo o filme, sem problemas, mas eu desejo sorte e segurança para estas pessoas no futuro. Não demora muito mesmo, para que Nobuyuki veja a verdadeira face do novo amigo e neste momento seria apropriado informar ao leitor sobre outra coisa: este filme é inspirado por fatos reais.

O diretor Sion Sono (de Suicide Club – 2001 e uma porrada de doideiras igualmente memoráveis), criou uma saga curta em um filme longo, quase duas horas e meia, que faz parte da “Trilogia do Ódio”, com outros dois filmes de sua autoria. Cold Fish é a história de um casal de monstros, sem nenhum escrúpulo ou remorso e do banana que os ajuda a cometer crimes, até não poder mais. Quando o primeiro assassinato acontece, na verdade aquela é apenas a primeira morte com a participação forçada de Nobuyuki, que envolvido no crime sem aviso prévio, apavorado demais com a ideia de morrer junto com a vítima e tímido demais para reagir na primeira oportunidade de escapatória, coloca o público também em uma situação de cumplicidade involuntária. É claro que ele não quer estar ali, que quer chamar a polícia, mas o maior impedimento é Mitsuko. Uma dinâmica bizarra, de facilitação das ações de Murata, está acontecendo naquela loja e fora dela, portanto não está perceptível quais medidas cautelosas o idoso já tomou, antes de aprontar. Não sabemos o que o pai que nunca toma atitude sobre nada, pode fazer para resgatar a filha com segurança, se conseguir fugir do local da desova do corpo, para onde foi arrastado, deixando os assassinos para trás. Ele é o dono do carro que trouxe todos até ali e até checa os bolsos algumas vezes, se certificando de que está com a chave, mas não se move e não é só pelo medo que tem de Murata. Todas as interações que ele teve com Mitsuko, desde que a menina saiu de casa, foram cheias de hostilidade, porque ela está ressentida com o pai e me desculpem, mas também porque o pai nunca impôs limites. Você pode não concordar e eu posso não concordar, mas não é da nossa conta, porque o responsável é ele. Se Nobuyuki quiser salvar a filha, vai precisar dar uma surra nela. 

Cold Fish não nos traz personagens dignos de admiração. Nem mesmo os detetives no encalço de Murata, nos passam a ideia de dias melhores no futuro. O filme é uma experiência sufocante, violenta e pesada, com um protagonista que nos frustra pela inércia, ao mesmo tempo em que dá indícios de que vai causar um desastre, quando finalmente reagir ao que lhe é imposto, por ser desengonçado e muito reprimido. Você já viu uma pessoa muito reprimida explodindo? Olhando para trás, a alternativa mais apropriada para alguém com as características emocionais de Nobuyuki, seria pular do barco e deixar tudo e todos para trás, só que esta opção é também a mais condenável, na teoria. A história inteira acontece durante um período de poucos dias, uma saga curta como eu disse e o modo estica e puxa de exibição nos drena por completo, com sequências de brutalidade que parecem eternas, como se estivéssemos vendo tudo em tempo real, alternadas com momentos suaves mostrados em uma edição frenética, onde algo simples como a câmera se afastando lentamente de uma pessoa pensativa, recebe um corte no estilo “pulo”, como se não houvesse paciência para esperar ninguém contemplar nada. Não podemos ter uma calmaria decente entre as tempestades. Alguns acontecimentos ficam sem explicação no filme, como por exemplo, um dos vilões tomando veneno, mas sem sofrer as consequências do ato. Este e outros eventos são mostrados com insistência e recebem destaque, como as velas que precisam ser acesas em um lugar com acesso à energia elétrica, mas eu presumo que como o protagonista é sempre o mal informado da história, esta seja uma maneira de colocar o público na pele dele. 

Não são tantos crimes assim, só que por mais bárbaros que eles sejam, o filme fala menos sobre a banalização da violência e mais sobre a banalização… do banal. Eu explico. Nós já vimos de tudo, certo? O cinema já viu de tudo e por diversas vezes, um personagem de fora daquele ambiente, exposto às regras do submundo, nunca falha em conseguir a nossa simpatia. Eu não estou dizendo que Cold Fish nos faça desejar o mal de algum inocente, mas o choque que o filme provoca não vem da maldade e sim da reação a ela, que nunca é a que se espera. Claro, a mão vai à boca, os olhos arregalam, a ânsia é incontrolável, mas por quanto tempo até o coitado se acostumar? É um filme cansativo, mesmo que busquemos entusiasmados um desfecho para aquela loucura. Quando ele chega, não é nada bonito, mas é mais verosímil do que estamos dispostos a admitir. Cansa, porque estamos vendo algo muito próximo da realidade, sem o romance e sem o heroísmo. As atuações são ótimas e a direção cuida para que todos no elenco tenham a chance de nos surpreender, tanto pelo trabalho no desenvolvimento dos papéis, quanto nas péssimas atitudes de seus personagens. O veterano que interpreta o Sr. Murata é um gênio! Foi somente deste psicopata, com uma vaga, triste e possivelmente mentirosa história de infância, que veio o único e breve momento genuinamente dramático do filme. Que povo doido, parece gente que eu conheço.