Recentemente, a história real que provavelmente foi a maior inspiração para este filme, voltou a fazer notícia com a soltura da americana de 32 anos Gypsy Rose Blanchard, que havia sido condenada por conspirar para matar a mãe abusiva, que a fez acreditar ter nascido com diversas doenças e possuir a idade mental de uma criança bem pequena. A farsa de DeeDee Blanchard, a mãe bastante perturbada de Gypsy, fazia com que elas precisassem se mudar de cidade o tempo inteiro, para não levantar suspeitas de vizinhos, médicos e doadores (cuidando da filha “problemática” em tempo integral, DeeDee não podia trabalhar…), mas por um breve período em cada vizinhança, o ato que a mãe conduzia com mentiras e medicação pesada e indevida, a tornavam uma verdadeira guerreira da maternidade, para os olhos piedosos de quem acompanhavam o crime como se fosse uma luta solitária. A chamada Síndrome de Munchausen se refere ao indivíduo que busca simpatia se fingindo de doente, mas no caso de DeeDee, a denominação muda para Síndrome de Munchausen por Procuração, que é quando o doente da cabeça cria uma doente do corpo para conseguir não apenas simpatia, mas admiração também. Pior, a criança debilitada precisa ser um dependente total da mãe, que assim, jamais será abandonada pelo filho.
Fuja começa com uma cena de cortar o coração no hospital, envolvendo um recente-nascido lutando pela vida, seguida por uma reunião de pais, quase 18 anos depois, em um ambiente que não é exatamente uma sala de aula. Mães e pais chorosos, se consolam pelo momento crítico que se aproxima, com seus filhos educados exclusivamente em casa, partindo para a universidade e se afastando dos genitores pela primeira vez. A única do grupo que não está se desesperando, é Diane (Sarah Paulson), mãe de Chloe, o bebê milagroso que infelizmente tem tantas complicações médicas, que elas precisaram ser expostas nos créditos de abertura do filme. O que chama a atenção, até mesmo para leigos como eu, é o quão desassociada parece aquela longa lista de doenças, que deixam a jovem com irritações permanentes na pele, alerta sobre tudo o que come e em uma cadeira de rodas, entre outros sintomas. O que deixa os pais da reunião perplexos, é que ainda que Chloe seja a filha com a rotina mais exigente de atenção e preocupante, apenas eles sentem a ansiedade da separação, enquanto Diane está tranquila, falando sobre todo o tempo livre que finalmente terá e todos os encontros que irá marcar… só que a verdade é que a calma de Diane vem de uma certeza perversa. Ela não tem a mínima intenção de permitir que Chloe se afaste dela para nada, nunca!

O filme, que também usa temas relevantes para a época (meio da pandemia) do seu lançamento, direto para o streaming, como aprisionamento e relações familiares em conflito, por conta do isolamento e da convivência forçada, possui atuações brilhantes das duas protagonistas da história. De um lado temos Sarah Paulson, que venderia gelo para um esquimó com aquele sorriso amoroso, convencendo qualquer um de suas narrativas mirabolantes, alternando entre a entonação pacífica e a combativa de acordo com a necessidade do momento. Mas mesmo que Paulson seja muito competente, o filme tende a distorcer a realidade um pouco, para que ela tenha sorte demais nas suas ações. Do outro lado temos Kiera Allen como Chloe, outra ótima atriz, com uma deficiência real que a torna perfeita para o papel. O problema é que por conveniência do roteiro, mas sem razão baseada nas diversas enfermidades da personagem, o poder da jovem de se opor a qualquer decisão sobre sua vida, fica ridiculamente limitado pela inexplicável falta de acesso à coisas simples, como internet… ou um amigo.
Pode parecer um pouco “pêlo em ovo” e eu acho que a minha frustração com certos aspectos do filme, vem do meu conhecimento prévio sobre o caso Blanchard, mas a impressão é que faltou lógica nos planos de Diane em relação ao futuro. Para evitar questionamentos do público, uma motivação insustentável precisou desmoronar cedo no filme, mas tardiamente na vida, com Chloe desconfiando da própria condição, após finalmente ver o rótulo de um dos diversos medicamentos que toma diariamente… ao invés de por exemplo, depois de nunca receber respostas das universidades, que chegariam pelo correio que sempre passa pelas mãos da mãe primeiro. Se a garota começasse a reivindicar o direito de conviver mais com outras pessoas, principalmente gente da idade dela, o que Diane responderia? Uma palavra com alguns reitores de universidades, sobre como melhorar as notas para a admissão, ou a contratação de um tutor, não poderiam ser negadas pela mãe para sempre, como ela estava fazendo com o telefone celular até então. Ao contrário de DeeDee, Diane não queria uma boneca para controlar, queria uma companheira para a vida, estimulando a menina academicamente e fazendo de Chloe quase um gênio da eletrônica. Isolar a menina evitou a mudança constante de casa, bastava mudar de médico, mas a inteligência de Chloe, da qual Diane se orgulhava tanto, se tornaria um problema eventualmente e o público deveria aceitar que a mãe está disposta a matar o cérebro que ela tanto incentivou, assim que a menina resiste ao projeto de controle eterno?

O diretor Aneesh Chaganty, do ótimo Searching (2018) e da semi-continuação dele, Missing (2023), se tornou um especialista em filmes violentos sem sangue, tensos, com detetives amadores que não saem de casa para conduzir suas investigações. Neste filme lançado entre os dois, com mais liberdade de locomoção teoricamente, mas com alguns problemas de desenvolvimento de personagens, o clima tenso ainda é o maior trunfo. Quando Chloe desperta para a realidade das próprias circunstâncias, sem o privilégio da revolta, por conta da opressão silenciosa, de uma supervisora que sempre se encarregou de todas as decisões, a angústia do filme vem dos olhos sempre vigilantes da mãe. A qualquer momento, ela pode surpreender a jovem no meio de uma descoberta bombástica e são diversas revelações, cada vez mais monstruosas a cada nova informação adquirida. Se Chloe conhecer a verdade, ela precisa fugir. Se ela falhar, ela não pode deixar a mãe em alerta, porque sabe Deus o que Diane fará para manter a filha ao lado dela. Este não é classificado exatamente como um filme de terror. Ele fica oficialmente entre suspense e mistério, mas sinto muito! Quando há risco de um destino tortuoso e inescapável, com uma vilã que só finge se sacrificar pela vítima, ninguém vai me convencer, só porque o monstro te alimenta bem e diz que te ama regularmente, que esta não é uma história (falha) de terror.
