Os irmãos de meia-idade Pedro e Jimmy, escutam tiros uma noite em sua chácara que fica “en el culo del mundo”, como alguém diz, disparados de onde termina a propriedade deles e começa a do vizinho. Como não dá para enxergar nada e avaliar o risco com exatidão, eles decidem esperar a manhã seguinte. Com o sol nas cabeças e acompanhados de dois cachorros, eles encontram o corpo na mata, ou metade do corpo, da cintura para baixo; junto com uma mala, partes desmontadas de um equipamento sofisticado, xerox de alguns documentos e um mapa, que faria o morto chegar na casa de Maria Helena, outra vizinha. O que a Dona Lena… que não nega que estava para receber visitas… que enfatiza que o forasteiro estava chegando para cometer um assassinato a mando dela, tem dentro da casinha mais humilde da região, é de fazer o corpo no bosque parecer algo trivial. O contratado que nunca chegou, estava a caminho da casa de Maria Helena para matar o filho mais velho dela, que agoniza há muito tempo, por conta de uma possessão demoníaca.
Como cadáveres e possuídos, no estado em que estiverem, são corriqueiros no terror, o curioso neste filme é que os residentes chamam o morto pelo apelido de “faxineiro”, não apenas indicando a natureza da profissão, mas sugerindo que ela é oficial e tão conhecida que já tem até nome carinhoso de acordo com os irmãos, com a polícia e com os vizinhos. O que está acontecendo aqui? Seria histeria coletiva? Não. Desde o princípio a presença do demônio, no corpo do agora monstruoso jovem, não é uma teoria e o termo possuído é aceito com uma naturalidade assustadora. Este é um terror com o sobrenatural às claras, encarado como parte real da vida e não só daquelas pessoas. Porque quando alguém duvida de que algo precisa ser feito imediatamente, a justificativa é que esse tipo de coisa “só acontece na cidade grande”, mas certamente acontece muito. O rapaz está possuído, declaradamente e Lena queria um profissional para dar um fim no próprio filho. Sem o procedimento correto, a maldade que habita nele iria migrar para outro membro da família, ou para um vizinho, depois para outro e depois outro. Eu assisto incrédula, apesar de ser muito satisfatório, porque é uma situação inédita. Sabemos que não é comum ver o terror tão bem tratado, respeitado até, por personagens que não só não vivem em um culto, como mal se vêem. A crença independe de escolaridade, idade, tempo de convivência ou poder aquisitivo. Só não se apavora imediatamente, quem acha que as testemunhas oculares estão mentindo.

Assistindo ao filme, é impossível não ser contagiado rapidamente pela sensação de emergência, quando o primeiro pensamento de gente que não tem dinheiro guardado no banco, é largar tudo para trás e ir embora, sem levar nada e ainda queimar as roupas pelo caminho. “Quem sabe mais para frente, a gente consegue algum dinheiro em um leilão”, diz um morador conformado. O mais apegado à propriedade, no entanto, tem um plano arriscado para salvar todo mundo. A ideia é aceita pelo público sendo plausível ou não, porque o único que poderia orientar o povoado com segurança, ainda está no bosque sem tronco, pernas e cabeça. Os moradores executam a tarefa e nós apenas torcemos, ainda esperando que um personagem que não crê em terror, apareça para manter a ordem natural do gênero, gritando “Pegadinha!”. A solução precipitada, mas teoricamente tão justificada para leigos como qualquer outra, é um estopim infernal que transforma o filme em uma ação de terror, com consequências absurdas e bárbaras, mas meu Deus, como dá certo!
Se a história precisasse de um resumo para a contracapa de um dvd, por exemplo, seria a história de Pedro e Jimmy, tentando escapar de uma cidade pequena, onde uma força maligna está prestes a contaminar qualquer um que permaneça, mas a verdade é que não há como reduzir brevemente a experiência complexa de medo generalizado e constante criada por este filme. O público é forçado a manter um pé na esperança e o outro na certeza da catástrofe, com personagens em fuga de um inimigo inédito, que é um dos mais nocivos e imprevisíveis que já encontramos no cinema quando passeia pela atmosfera, e ainda pior quando encontra um inocente, cuja alma ele consegue dominar sem muita resistência. Quando percebemos que se livrar dos bens materiais e fugir foi a parte mais fácil, mas que depois disso, os personagens estão tão perdidos quanto nós, entendemos que estamos vendo um filme que não nos fornece regras, ou fornece regras falhas, propositalmente. O problema será lidar com tretas e desavenças já existentes, impossibilitando a credibilidade na hora de pedir ajuda e com o bicho sempre poucos passos atrás. O frenesi das vítimas se torna tão prejudicial, que alguns erros não podem ser evitados.

Demián Rugna do ótimo Aterrorizados (2017), dirige este filme argentino, quem nem tem nome em português ainda, recheado de cenas inesperadamente horrendas e sem misericórdia. Não há freio ou tabu e esta falta de pudor é o segundo maior trunfo do filme. O primeiro é nos fazer pensar que algumas precauções são exageradas, para depois vir a rasteira, que nos diz que elas deveriam ter sido muito mais rígidas. Tecnicamente ele é impecável, em termos de fotografia, planos, áudio, mas é o roteiro que nos pega e ele é sensacional. O ritmo é bem mantido e eu vou passar pano porque sei que é o certo, para certas cenas que podem ser erroneamente confundidas com “Diabo x Machina”. Ninguém que está morrendo de medo, cansado e sem o devido treino, hesitaria em acabar com um demônio na porrada, violando leis naturalmente duvidosas, criadas pelo lado ruim do mundo espiritual. Todas as vezes em que uma solução se apresenta para os personagens, confiamos nela, não porque acreditamos que seja genial, mas porque queremos que funcione. Não precisa ser rápido, certamente não precisa ser fácil, apenas dê certo! Eu já estou me coçando para ver o filme de novo, que filme! Um forte candidato ao melhor do ano. Eu só preciso de um tempinho, para me recuperar dos pesadelos que ele me deu. É uma história tão contagiosa para nós, quanto o capeta é para os moradores da cidade.
