Mike Flanagan adquiriu um terreno na Netflix e está construindo casas sem parar. O mais novo empreendimento dele, traz do ostracismo acidental o pai da escrita gótica, Edgar Allan Poe, para uma minissérie em oito capítulos, com temas baseados em seus contos. Eu preciso admitir que não me lembrava de muita coisa do escritor, além da familiaridade com certos títulos e uma vaga lembrança de uma história com um detetive e mortes envolvendo macacos, ou algo assim. Eu sei quem ele é, mas não me lembro do trabalho na íntegra, mas a boa notícia é que conhecer a obra não é um pré-requisito, para apreciar esta criação de Flanagan em homenagem ao escritor. Quando o discurso em um funeral é apresentado na forma daquele poema único, o público entende que se trata de algo especial e irá procurar Poe por conta própria, como é a intenção da minissérie. A minha ideia geral do trabalho do autor era a de um terror acompanhado de moral e desprovido de explicação lógica. O sobrenatural era uma ferramenta muito presente e seus personagens sentiam que o mereciam. Este horror lhe pertence, dizia o autor, por suas ações criminosas ou pelas omissões da mesma natureza. Ninguém foge, ninguém nem pensa nisso. É tão palpável, que instintivamente é preciso enfrentar. Escapar significa viver em tormento.
Enquanto os capítulos passam, a memória é reativada aos poucos e novamente, é sobre o que Poe achava interessante e ele queria melancolia. Se as histórias falavam de gente com vidas cheias de sucesso, o autor focava na parte feia delas, onde estavam os medos, as obsessões e os segredos sujos. Neste aspecto, a atmosfera é perfeita e ela é mais do que cenários e suspense. Flanagan, com sua família de atores habitual, usa bom humor, criatividade e recursos modernos para inserir os contos de Poe em uma história contínua, sobre personagens com uma vida extremamente glamurosa, que ninguém invejaria, obedecendo a uma grande regra do autor: não deixe ninguém sair ileso, mesmo que seja por efeito colateral, ao desfrutar de privilégios adquiridos ilegalmente. A história principal, que dá nome à minissérie, é desenrolada ao longo de todos os episódios, mas cada um deles contém uma tragédia inspirada em um conto específico, fazendo com que os capítulos tenham uma certa independência. Então temos na história um narrador principal no tempo presente, cedendo à derrota e revelando sua trajetória sem se preocupar mais com a autopreservação, mas seus flashbacks antigos são invadidos por outros mais recentes, pertencentes aos tais efeitos colaterais de decisões diabólicas e justificando a decisão do narrador de se entregar à justiça. Nada mais adequado portanto, que tenhamos o cuidado de falar de cada um deles separadamente.

1 – MEIA-NOITE QUE APAVORA
Roderick Usher é um CEO de muita influência e provavelmente teria a imprensa cobrindo o funeral, mesmo que ele só estivesse enterrando apenas um e não vários filhos de uma vez, como é o caso. Da mesma forma que tantos membros da mesma família, morrendo sob circunstâncias abomináveis dentro de poucos dias, atrairia a curiosidade do mundo, mesmo que o patriarca fosse um desconhecido. O desgosto é tão grande, que Roderick retornou à apodrecida casa da infância, da época em que ele ainda não era um magnata corrupto da indústria farmacêutica, acendeu a lareira, abriu a bebida mais especial que seu dinheiro comprou e chamou o promotor de justiça, que também é um antigo desafeto, com o intuito de confessar seus crimes.
Nesta abertura, aprendemos sobre as origens dos gêmeos Roderick e Madeline, com pais inadequados e nossa torcida para que eles tenham uma vida mais fácil, ou pelo menos digna. Isto só acontece, eu adianto, enquanto não os conhecemos muito bem. Assistimos ao tenso último jantar, com os agora seis falecidos filhos de Roderick, em meio à acusações de sabotagem e traição, em uma família onde a maioria (nascidos fora do casamento) já se sente impostora. Conhecemos também a força maligna que se instala na vida de todos, de maneira persistente e avassaladora, e pelo estrago que causa sem que as rugas aumentem, podemos dizer também que ela é uma presença demoníaca.

2 – A MÁSCARA DA MORTE RUBRA
A regra de ouro diz que, quem tem o ouro faz as regras e o dono do ouro no caso, não é nem Roderick, é Poe, que estabelece em seu trabalho que amaldiçoados viram médiuns, quando o prazo do cumprimento do contrato se esgota. Os sintomas para o diagnóstico que o patriarca recebe incluem alucinações, então ele acredita que é isto o que está acontecendo, nos primeiros dias após as primeiras mortes, que começam com o filho mais novo e mais inconsequente, em um conto ousado do autor e com uma carnificina horrorosa. A negligência nos negócios da família, se une à negligência de quem não se importa com o modo como a família faz negócios e só pensa no dinheiro. Poético, ao gosto do escritor.
A melhor coisa neste episódio é ver outra fusão, de dois estilos diferentes, dando certo na telinha. O fantasma que anuncia a chegada e se aproxima lentamente, pertence às adaptações de Poe que dominaram o cinema de terror nos anos 60. A surpresa da proximidade repentina, ironizada muitos episódios na frente, é a linguagem favorita de Flanagan. Tanto a ansiedade quanto os sustos, pertencem ao público.

3 – ASSASSINATO NA RUA MORGUE
O título vem do conto cuja lembrança é a mais vívida para mim e é neste que eu percebi que não só os nomes dos episódios, mas as mortes de cada membro da família, se inspiram nos temas daquela determinada história. No original, um duplo assassinato bizarro, com o uso brutal da força não-humana, intriga as autoridades. Mãe e filha dilaceradas e um detetive capaz de resolver o mistério, sem que isto alterasse suas crenças, é algo que se destaca nas histórias de Poe. Apesar de que a ideia de macacos assassinos, pode ter sido o que gravou esta na minha memória.
Sabemos que na série, duas mulheres trabalham com chimpanzés e quando eles começam a ganhar mais destaque no episódio, eu mal consigo conter meu entusiasmo. Flanagan tem que mostrar o ocorrido, já que a causa da morte não será um mistério e Poe, pela época de lançamento do conto, teve que se restringir a apenas descrever o estado dos corpos. Infelizmente, entre as histórias do velho Usher para o promotor, utilizando milagrosamente flashbacks secretos de toda a família, a direção decide não apelar para o grotesco e a única coisa inesperada é a vítima.

4 – O GATO PRETO
Ninguém além de Léo e claro, do demônio no abrigo de animais, consegue ver o gatinho preto que ele adotou na surdina, para substituir o gato morto no qual ele deu sumiço, assumindo uma culpa que nunca fica clara. Como já sabemos o destino de todos os filhos, oficiais e extraconjugais de Usher, as sensações do episódio são de contagem regressiva e cerco se fechando. A partir daqui, percebe-se que a entidade visita discretamente cada um dos herdeiros de Usher, sem uma ordem certa, observando os comportamentos e esperando a oportunidade para atacar. A belíssima Carla Gugino, uma regular nos trabalhos de Flanagan, aparece com diferentes personalidades como uma bala em uma roleta russa, mas no final das contas, ela acertos alvos obedecendo ao bom senso, ou à ordem de chegada na família.
O tema do episódio é a paranóia e por mais que continuemos retornando, décadas no tempo, para as aventuras do jovem (e pobre) Roderick, onde uma narrativa vagarosa dá pistas do início da riqueza e do fim do primeiro casamento, o foco é o quanto aquela pequena criatura felina, consegue dominar alguém muito maior e mais poderoso, quando o desejo de destruição não pode ser contido.

5 – O CORAÇÃO DELATOR
Ok, quem nunca ouviu falar no cadáver barulhento, atormentando o assassino? É um clássico que nasceu com Poe! No momento em que o título aparece, outras adaptações desta história em cinema e televisão, começam a martelar na cabeça, como a culpa por ter esquecido a grande influência que o autor exerce sobre o terror. A quarta filha a caminho da cova, não enterrou ninguém debaixo da própria casa, mas já comete o crime quando garante a segurança e o sucesso de uma operação cardíaca, a uma enferma sem esperanças, sendo que o procedimento ainda nem saiu da fase experimental com animais. Portanto o barulhinho irritante, persistente e condenatório, é todo dela!
Paralelamente, todas aquelas aparições da entidade, não resistem à exposição de câmeras de segurança e celulares em todos os lugares, assim como o seu significado não resiste ao cinismo de uma família acostumada a comprar tudo. Quem a reconhece do passado, se convence de que ela é mais uma herdeira, se infiltrando na vida das vítimas e eliminando a competição, antes de se apresentar para os Ushers como a única que restou. Esta teoria precisa ignorar os aspectos nada naturais das mortes, além de taxar esta suposta bastarda, como a pessoa mais sortuda do mundo. É a racionalização da loucura tomando conta do episódio, mas quem pode condenar o delírio coletivo, quando o agente causador é repetitivo e perseverante?

6 – O ESCARAVELHO DE OURO
Precisamos admitir que o elefante branco da minissérie, vem na forma de artefatos de Poe sendo inseridos sem muita naturalidade, na vida dos habitantes da Casa Usher. A morte inexplicável do gato, vem à mente, assim como o título deste episódio por exemplo, que é um nome conveniente para a história, mas inadequado para uma empresa de saúde e beleza, pertencente à próxima vítima. No entanto, a maior habilidade de Flanagan foi extrair a inspiração do mestre da circunstância sinistra que é Poe, para trabalhar o que é realmente o seu ponto forte: o desenvolvimento de personagens dentro destas circunstâncias. Estava tudo aqui desde o primeiro episódio. A obsessão por perfeição, o casamento do qual a futura morta não consegue se permitir participar e a fixação na aparência física, que precisa ser conferida o tempo todo, nos fatídicos espelhos distribuídos por todo aquele apartamento, decorado com elegância e sem intimidade.
Flanagan sabe dar aos personagens, que Poe descrevia muitas vezes pelos olhos de observadores não confiáveis, a humanidade que eles exigem em um meio muito diferente de contar estas histórias. Até os secundários, fora da família, nos causam simpatia, pena e fascínio. Com o avanço da série, é gratificante constatar que ele consegue este feito, sem que algum episódio caia na besteira de desacelerar os acontecimentos, que transformaria algum segmento em uma mini-novela. Eu também fico feliz que o diretor mantenha na ativa, gente que estava esquecida por Hollywood, como por exemplo o ator Henry Thomas, o Elliott de E.T. – O Extraterrestre. Ele interpreta o verdadeiramente imbecil e falsamente inofensivo primogênito da família, com tanto entusiasmo, que este pode ser facilmente considerado o melhor papel de sua carreira. Ele roubou o episódio que nem era dedicado a ele e não é a toa que se tornou um dos mais escalados pelo diretor.

7 – O POÇO E O PÊNDULO
Neste ponto da minissérie, eu já estou há algum tempo tomando o cuidado de ler sumários dos contos do autor e me pergunto, pela complexidade que envolve a história escrita, como eles farão esta morte funcionar. Depois de cinco tragédias consecutivas, o choque é substituído por raiva, com o sentimento revelando a verdadeira natureza do considerado único não-problemático da família, mas que na verdade sempre sonhou em ser o maior representante do modo Usher de resolver problemas. Todas as histórias possuem uma boa dose de tortura psicológica, mas esta é especial porque na original, duas coisas interessantes acontecem: o sobrenatural fica de fora e a esperança triunfa.
Na série, o demônio não interfere na tortura ou na salvação e este foi um detalhe notado e apreciado aqui. No entanto, Verna, como a coisa-ruim é chamada, faz o que lhe compete trazendo o pêndulo para quem o merece e o resultado é excepcional, porque replica muito bem a inspiração e porque pela primeira vez na série, a brutalidade não é um excesso. Um episódio perfeito com traições épicas (mesmo que anunciadas) e corações partidos, no qual ficamos sabendo qual poderia ter sido o destino de todos, caso acordos não tivessem sido firmados há muito tempo, por poder e dinheiro.

8 – O CORVO
O terror não é páreo para a dor, quando já não há mais ninguém para morrer, só que este é na verdade, finalmente, o conto sobre a primeira vítima da Casa Usher e o episódio tem Roderick e Madeline vestidos como Bonnie e Clyde, vivendo os acontecimentos sem interrupções. O engraçado é que eu imaginava algo acidental e acobertado em caráter emergencial, mas a história reforça o quanto algumas maldições são justas. Décadas mais tarde, o conto mais famoso do autor e o mais famoso sobre luto, entra inevitavelmente em cena, com tristeza profunda e arrependimento, embutidos na única perda que faz o velho Usher chorar de verdade. Alguma morte ele tinha que sentir, para reascender aquele coração gelado, até o momento em que ele pararia de vez.
Obrigada Mike, por desenterrar em conjunto, com um clima de celebração, as histórias que tinham ido para o túmulo com Vincent Price. De todas as suas casas, esta é a melhor! Obrigada Edgar! Você foi o pioneiro em tantas coisas que apreciamos neste blog, que foi um prazer assistir a este tributo. Não me esquecerei do seu trabalho nunca mais. Nunca mais.
