Faz algum tempo que não pintava um desses por aqui, assim, trágico. Não apenas fatalista, mas capaz de estabelecer uma conexão forte com o público, no sentido de que, por mais que seja uma situação extraordinária, nenhum de nós está a salvo de um destino semelhante. Fale Comigo é uma produção australiana independente, distribuída pela frequentemente confiável A24 e é o primeiro longa de muita gente envolvida, inclusive sendo estréia dos dois irmãos gêmeos youtubers Danny e Michael Philippou, do canal RackaRacka na direção e todo mundo fez bonito! O filme é sério, sem ser pretensioso. Assustador sem apelação. Humilde sem pobreza. Na história, os efeitos colaterais são minimizados, para os que escolhem respeitar os sinais de perigo, mas a retaliação é sem misericórdia, para quem passa dos limites pela razão que for. Um terror brutal que abraça a contagem de corpos que se fizer disponível, já que não há escassez de mortos e o objetivo é a assombração, com óbitos ocasionais. Não, espera, assombração seria a descrição apropriada para espíritos malignos que aproveitam oportunidades, para os sortudos em cenários mais “escapáveis”… sendo que aqui os carinhas são organizados, tem planos e por Deus, que inferno eles provocam!
O filme começa de maneira frenética, quando um rapaz invade uma festa procurando o irmão mais novo, que já está colhendo os resultados do contato indevido com o além. Infelizmente este tema, do mais velho lutando pelo caçula, não acontece somente uma vez no filme, porque o bicho está pegando e a molecada não sossega. Aquele termo em inglês “safety in numbers”, usado para descrever a percepção de segurança que temos quando a casa está cheia, é desbancada logo de cara. A única graça alcançada com multidões neste filme, é um aumento no número de testemunhas para os desastres que se aproximam. Outra ideia descartada, é a dos objetos amaldiçoados que criam problemas pela simples presença em um ambiente. A mão embalsamada e engessada, condutora de encontros sobrenaturais e prestes a se tornar um ícone no cinema de terror, depende de uma interação específica para funcionar, portanto, está liberada para virar uma peça (feia) de decoração em qualquer residência, sem prejuízos para as almas dos moradores, contanto que todo mundo se comporte.

No entanto, é óbvio que não podemos esperar bons modos de adolescentes em grupos. Não é apenas o ato sendo praticado sob precauções quase inexistentes, é também o registro em vídeo, compartilhado em redes sociais e grupos escolares, convidando mais e mais curiosos para participar das ações reprováveis, mesmo que a divulgação de pelo menos uma fatalidade relacionada, também não tenha sido discreta. Com pelo menos um emocionado fazendo uma live e o restante igualmente sem noção, acompanhando a brincadeira de perto; instruções relativamente simples são transmitidas para o corajoso da vez: “cumprimente o objeto e peça para ele falar com você. Quando a entidade aparecer, ignore o pavor e convide-a para entrar.” O relações públicas da mão maldita, que supostamente pertenceu a uma médium, adverte que a sessão espírita não deve ultrapassar a duração de noventa segundos, como se esta fosse uma regra confiável e infalível neste tipo de atividade. O que se segue é uma verdadeira roleta-russa de invocações, na qual os adolescentes não controlam o tipo de personalidade que irá aparecer, ou têm ideia do perigo que estão correndo.
Apesar da inconsequência ser uma característica inevitável da pouca idade, individualmente, os personagens estão longe dos estereótipos reservados às vítimas em filmes de terror. Não existe burrice à serviço da preguiça do roteiro, existe falta de conhecimento e pressão externa bem fundamentada, para participar do jogo. Os personagens principais têm bastante tempo de cena, para nos mostrar o quanto são bem desenvolvidos. Para expor o realismo de suas angústias e a complexidade de seus relacionamentos. Nenhuma sequência de possessão é vista por nós inteiramente sob a ótica do entretenimento, até quando as incorporações ficam tão corriqueiras que se tornam banais e divertidas para os participantes, porque nos importamos com eles. À propósito, é durante estas cenas que os atores possuídos se entregam completamente, brilhando como veteranos que não se intimidam com atuações mais exigentes, envolvendo emoções multifacetadas e expressões corporais atípicas. O destaque é a jovem Mia, uma adolescente dependendo da compaixão de conhecidos e estranhos, desde que a mãe morreu, em um suicídio “acidental”. Se aquela mão do inferno, precisa de um vulnerável para se aproveitar do resto do grupo, Mia é a candidata perfeita. Sophie Wilde interpreta tudo o que o papel joga na direção dela, sem restrições e sem pieguice.

Em sua estreia nas telonas, os irmãos Philippou já demonstram habilidade na condução, com uma história bem escrita que também é parcialmente de autoria deles. Para a nossa sorte, eles entram no cinema se dedicando à arte de dar medo. O filme é cheio de sustos, mas eles surgem como um sentimento inevitável, quase acidental e sem gratuidade. Como não dar um pulo com aquelas aparições? A maquiagem é perfeita e quanto mais acidentado o morto, mas repulsa ele causa “sem querer”. Outra evidência da direção madura, é a abundância de cenas que não são responsáveis pela construção de suspense e sim pela construção da própria história, com calma. É um filme que lida bem com o orçamento baixo, escolhendo locações de fácil administração por produções pequenas, sem parecer barato e também usando esta economia de maneira útil para a narrativa, com uma atmosfera de tranquilidade por muito tempo, enquanto um terror Blockbuster já teria enfiado uns três incidentes sobrenaturais, somente para gastar dinheiro e não deixar o público relaxar, mas é aí que se encontra o maior trunfo da dupla de diretores. É pela calmaria forçada, com cenas que interpretamos falsamente como dispensáveis, que somos induzidos a tremer somente quando alguém recita o abracadabra, segurando aquele trabalho amador e horroroso de artesanato. É só depois que o filme termina, deixando aquele embrulho no estômago, que conseguimos perceber que a tempestade já estava em andamento, enquanto o filme nos distraia.

Crítica incrível
Obrigada!