O japonês Kiyoshi Kurosawa, talentoso diretor sem preferência por gênero cinematográfico, que passeia pelo terror de vez em quando, nos trazendo com frequência uma visão pessimista da ultra-organizada e educada sociedade japonesa, fez após décadas de trabalho em televisão e filmes sob encomenda, sua grande estréia para o restante do mundo com A Cura, uma obra mais autoral e memorável, que não se limita aos personagens e cenários que vemos, aos sons que ouvimos, aos temas que lhe são atribuídos ou ao plot que o descreve, para criar nas nossas mentes uma ideia diferenciada de horror sobrenatural, onde fantasmas são deixados de lado, para que o público possa temer não apenas a insanidade temporária alheia, mas aquela que nem sabemos que guardamos em nós mesmos. Este é um filme para ser visto com muita calma e revisto, se houver a chance.

Logo na abertura, há um episódio bem revelador de telecinesia, desencadeado pela leitura de uma passagem de um livro popular. Não é nada demais a princípio, uma mesa treme, só isso, durante uma consulta entre uma mulher e seu psiquiatra. Acontece novamente no filme e como terremotos são comuns no Japão, o incidente que estremece um hospital inteiro não chama a atenção devida de ninguém a tempo, nem a nossa. Em seguida, um homem voltando do trabalho, vandaliza um local público para roubar um pedaço de cano. Naquela mesma noite ele ataca uma prostituta com o objeto. Seria um crime típico de cidade grande, sem sentido, porém sem mistérios, a não ser pela letra X que corta o torso da vítima. De repente, temos a assinatura de um serial killer em mais um corpo aleatório, sendo que tanto neste caso como nos outros, os assassinos são diferentes, mas isto não é tudo. Capturados logo após as mortes, os criminosos, que não tinham ficha na polícia ou histórico de violência até então, não negam a autoria, mas não conseguem explicar o porquê das mortes. Como as autoridades jamais divulgaram detalhes dos crimes, a população não possui motivos para estar em pânico, ou para oferecer uma teoria plausível em relação a um copycat. 

Uma grande característica dos filmes de Kurosawa (que não é parente do grande Akira), é a transição-pegadinha, que nos jogando em uma cena que não tem nada a ver com a anterior, mudando o cenário e o assunto inesperadamente, se certifica de que o público esteja sempre atento para não ficar perdido. O trabalho mais importante do filme é o do editor, que não nos permite piscar ao inserir cenas aparentemente fora do contexto, nos momentos em que elas são uma verdadeira invasão e eu incluo neste pacote alucinações e o filme pausando, deixando a história passar, enquanto a câmera mostra o que acontece fora do que deveria estar enquadrado. Se fica um pouco estranho ou completamente sem sentido, é porque nós ainda vamos obter uma resposta ou porque estávamos distraídos em uma sequência anterior “menos interessante”, que serviria agora como referência. O filme também tem uma trilha sonora notável, bastante atmosférica e apropriada para o que estamos vendo, mas o som que realmente brilha no filme, é o ambiente. Gotas de água provocam medo. O liquidificador nos deixa entre o alívio e a apreensão. O barulho de uma máquina de lavar, nunca foi tão expressivo ao traduzir exatamente o que os personagens, sempre retraídos e sufocados, estão pensando por trás das palavras civilizadas. Quem fala o que pensa aqui, é doido! Os efeitos sonoros da vida cotidiana nas mãos do diretor, preenchem as lacunas deixadas pelo que nunca é dito. É uma crítica à sociedade tradicional e conservadora que ele sempre usa como base, para as histórias que dificilmente funcionariam em outros lugares.

Os crimes não param de acontecer, com aquela letra enorme do pescoço até o peito das vítimas, deixando um rastro de assassinos confessos/apavorados na cadeia e a polícia sem noção sobre como colocar um fim na epidemia. No comando está o detetive Takabe, vivido por Kôji Yakusho, uma super estrela no Japão e ator regular nos filmes de Kurosawa. O detetive é o marido daquela que moveu a mesa com a força do pensamento, após ler um trecho de Barba Azul. Não se sabe se as habilidades paranormais da esposa são inerentes, ou se elas surgiram depois que ela adoeceu, mas ela não é a única no filme com super poderes, sofrendo de problemas sérios para preservar memórias recentes. Durante as investigações, surge a figura de um jovem chamado Mamiya como principal suspeito. Confuso e sem saber a própria identidade, o andarilho se mostra um hipnotizador muito eficiente, com uma técnica simples e um interesse obsessivo na vida alheia. Um vilão difícil e irritante (mas não violento), ele torna impossível a tarefa de manter a paciência em sua presença, principalmente para o detetive que vive frustrado e ainda tem que ouvir repetições e variações de “hã?” ou “quê?”, toda vez que faz uma pergunta séria para o rapaz. Ele desperta o interesse da polícia, por ser o último a ter contato com os assassinos antes dos crimes. Preso antes da metade da história e com o público certo do seu envolvimento, resta provar a participação dele nos assassinatos, mesmo sem evidências e com um argumento quase fantasioso. Neste momento, eu me perguntei olhando para o tempo restante de filme, se era apenas isto mesmo o que restava para acontecer. Não era, porque esta não é uma narrativa comum. 

O filme conta com um psicólogo forense como coadjuvante, o Dr. Sakuma, que auxilia Takabe com questionamentos, com esclarecimentos e segundo ele, seria muito difícil hipnotizar uma pessoa para cometer um crime, quando o hipnotizado não tem inclinação nenhuma para infringir a lei. Está claro que o poder de sugestão de Mamiya é irresistível, assim como não restam dúvidas de que ele manipula mais do que os pensamentos das pessoas, com seus dons inexplicáveis. Só que quem espera ter todas as respostas para os fenômenos, que fazem de A Cura um filme único e muito especial, que incentiva pesquisas complementares e muita reflexão após a subida dos créditos, está muito enganado. Eu ainda me vejo com tantas perguntas, que uma excursão pelos vídeos de análise no youtube se fez necessária, apesar de apenas parcialmente frutífera. O rapaz está solto sem rumo no mundo há algum tempo e todas as vezes que o vemos interagindo com alguém, ele não consegue evitar uma terapia forçada, com resultados horripilantes e desastrosos, mas se a teoria do psicólogo da polícia estiver correta, só mata quem quer matar e não tinha a coragem. Quantas outras pessoas Mamiya incentivou e como elas reagiram às sugestões dele? Seria ele um sádico com poderes ou um alienado, que além da demência, possui uma compulsão por ouvir e “curar” as aflições de quem cruza seu caminho? Takabe, que se mostrou violento em diversas ocasiões e que esteve na companhia de Mamiya diversas vezes, não mata ninguém. Seria ele um curado ou um imune? A verdade é que eu não sei nem mesmo se posso confiar na visão dele, que é o protagonista da história. Pelo que o filme nos sugere, até nós podemos estar hipnotizados, já que quando veículos passeiam entre nuvens, em cenas que deveriam ser vistas como as mais normais do conjunto, existe a possibilidade de nada neste filme ser real, desde o princípio.